O amor

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Minha cabeça estava estourando. Droga!

Me encontrava cansado mental e fisicamente. Mais um dia se passara e eu não tinha nada para comer, nenhum lugar onde dormir; minha garganta ardia de sede. As pessoas me desprezavam por quem eu me tornara.

A única forma que eu considerava para sobreviver era continuar fazendo o que eu mais sabia, aquilo que meus amigos do crime me ensinaram desde cedo; o que eu denominava como minha maior diversão. Sim, era inaudito contemplar os semblantes desesperados dos indivíduos para os quais eu apontava uma arma. Seus olhos assumiam um pânico impagável. Se elas por vezes me ignoravam, aquele era o momento no qual eu deteria toda a atenção; eu lhes causava medo. Era bom saber que ao menos nisso eu era reconhecido.

Não. Eu não era maluco, nem sequer havia matado ninguém. Ainda não havia me permitido tamanho crime, porém, do jeito que a situação andava naquele tempo, talvez eu não estivesse tão longe de fazer algo parecido.
Aquela era minha jornada há anos, afinal.

Era eu um eterno fugitivo e certamente não haveria nada que me fizesse mudar de rumo.

Às sete da noite olhei no celular novo que tinha conseguido nos últimos dias. Eu andava por uma rua carregada de casas grandes e afortunadas, era um dos bairros mais desenvolvidos da cidade. Na urbe pequena onde vivia era difícil encontrar um condomínio proibido de se entrar já que geralmente não havia essa restrição. E isso era deveras bom para mim.

Percebi rapidamente que a maioria das portas das mansões estavam completamente fechadas. A rua continuava silenciosa e deserta; carecia de seguranças, porém, algumas casas possuíam câmeras. Eu tinha conhecimento de todo esse esquema dos ricos e, para o azar deles, eu também tinha meus esquemas.

Já avistando a casa alvo, fui em sua direção, porém, parei quando lá no final da rua captei portas abertas. A luz acesa da sala de estar era forte e refletia na varanda da casa branca, pequena, mas não simplória. O dono daquela moradia deveria ter dinheiro de sobra.

Ergui as sobrancelhas e dei um sorriso torto. Ótima hora para abrir a porta, pensei.

Chequei se a arma ainda estava no bolso espaçoso de minhas calças e segui. Chegando próximo, dei uns passos até a varanda e subi três degraus de madeira para ficar realmente de frente à casa. Foi nesse momento que meus olhos encararam um velho sentado em uma poltrona. Ele assistia televisão e, por algum motivo, só me percebeu ali segundos depois de eu já ter adentrado na casa.

— Olá, irmão — o idoso enunciou, lançando-me um sorriso simpático. — Estás bem?

Olhei-o sem compreender, já que sua reação ao me ver foi, no mínimo, estranha. Normalmente as pessoas se assustariam caso um estranho entrasse, sem permissão, em suas casas.

— Sente-se, jovem — ele sugeriu, levantando-se e indo para mais perto de mim. — Vou lhe servir um café — o homem deu mais um sorriso e virou de costas.

Aquela seria a oportunidade perfeita para deixar o velhinho em minhas mãos. Certamente não havia ninguém mais ali e o fato de ele se distrair preparando um café me daria tempo suficiente para pegar o que eu quisesse. Eu era covarde o suficiente para fazer aquilo.

Pus a mão no bolso para puxar a arma, segurei-a por alguns instantes. A qualquer movimento brusco do velhinho eu estaria preparado, apesar de ele não me parecer capaz de muita coisa.

Olhei bem a sala: quadros enormes e, certamente, valiosos espalhados pelas paredes, fazendo a decoração do ambiente. Porém, eles eram grandes e não daria para levá-los sem que ninguém percebesse. Suspirei, refletindo, até que consegui notar uma aliança, provavelmente caríssima, sobre a mesa e próxima da televisão. As pedras verdes nela reluziam em plena noite. Direcionei-me celeremente até a mesa, peguei o anel e coloquei-o no bolso. Assim que fiz isso, notei que o velho tinha acabado de chegar. Apenas quando me lançou outro sorriso, confirmei que ele não tinha visto nada.

— Estavas lendo essa belezura? — o senhor perguntou, sustendo duas xícaras nas mãos trêmulas. Fiquei me perguntando de que belezura ele estava falando. — Tome, esse é o seu. — O senhor me ofereceu a bebida quente e eu aceitei. Logo sentou-se em sua poltrona e indicou que eu me sentasse no sofá de frente para ele.

Obedeci para não deixá-lo desconfiado. Eu tinha que fugir antes que ele se desse conta do roubo.

— Eu estava falando disso, meu jovem. — O homem pegou um livro que estava sobre a mesa, próximo ao lugar onde aliança se encontrava há minutos. — Tu já leste, não é mesmo?

Era a Bíblia Sagrada.

— Não.

— Posso falar um pouco sobre, se quiseres — ao endireitar-se na poltrona, continuou — Este é um livro muito importante e, para mim, o melhor de todos.

Bufei. Apesar do meu semblante entediado, ele prosseguiu sua prosa.

— Deus é maravilhoso. Já parastes para pensar quantas coisas Ele já fez em sua vida?

Suspirei. Para evitar respondê-lo, bebi um gole do café.

Mil palavrões vieram na minha cabeça. Aquilo estava horrível.

— O que você colocou aqui? Sal?

— Está salgado? — ele experimentou e cuspiu o que deveria ser sido engolido. — Esqueci onde pus o pote de açúcar! — O homem bateu na própria testa, gargalhando. — Isso é bem frequente, sinto muito. Sofro de Alzheimer.

— Então você esquece de tudo?

— De tudo não, mas de muitas coisas. Eu... Tenho dificuldade para lembrar de algumas pessoas e de alguns acontecimentos... Isso é bem ruim. — Percebi que seus olhos carregaram-se de tristeza. — Mas é bom saber que das principais coisas eu não esqueço. Deus não me deixa esquecer!

— De novo essa história de Deus... — Minha paciência estava se esgotando.

— Se eu não falar dEle, quem falará, meu jovem? — ele questionou calmamente, mas não esperou minha resposta — Ele não me abandonou em meio a essa doença nem me permitiu esquecer de Seu Amor... Então, como serei capaz de deixar de falar de Deus sendo que Ele é o único que de quem não posso esquecer?

— O amor. Outra coisa que não existe. — Caçoei, levantando-me.

— O amor vive em nós, irmão. Só nos resta saber como despertá-lo.

— Por que me chama assim? — indaguei. — Você nem me conhece e me deixou entrar em sua casa, e me fez um café... Por quê?

Eu queria respostas. Afinal, as pessoas não eram boas; o mal já havia tomado todos os cantos do planeta. Os seres humanos estavam afundando em sua própria maldade. O amor havia sido extinto.

— "Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, o amor, estes três; mas o maior destes é o amor."

Ruminei o que ele dissera; por algum motivo, queria acreditar naquelas palavras. A intensidade que aquele homem havia usado para expressá-las tinha sido... Tocante?

Entretanto, havia medo, pavor dentro de mim. Temia que me decepcionassem, que mentissem para mim!

— O que alguém ganha amando os outros?

— Ganha a sensação de dever cumprido. De poder ver o sorriso nos rostos das pessoas. De ver o amor sendo espalhado — o idoso tossiu, aparentando suas debilidades. — Obtém, principalmente, a sua parte com Deus.

Seria verdade? Será que Deus me amaria, mesmo depois de tantos erros que eu havia cometido? Será que eu encontraria o amor mesmo depois de ter perdido a esperança?

— Como tem tanta certeza que Deus existe? Quem te provou isso? — Interroguei, sem me conter.

— Se Deus não existe, meu jovem, responda-me: o que será essa sensação de paz dentro do meu coração? Essa presença forte que a cada dia anseio mais? De quem é essa voz insistente dentro do meu coração que me faz desejoso de ser melhor por causa dEle? Me explique porque, se Ele não existe, eu o amo como se Ele estivesse aqui?

Calei-me. As palavras dele eram carregadas de doçura e seus olhos transpareciam concórdia.

— Tenho certeza que no dia em que você, meu jovem, sentir a presença dEle, terá finalmente a convicção de Sua existência. Então saberá que Ele habita nos corações que lhe oferecem morada.

Respirei fundo, antes de pronunciar:

— Você pode me trazer outro café? — Eu precisava ir embora. — Com açúcar?

— É claro.

Logo o homem se dirigiu à cozinha e eu me levantei apressadamente. Peguei a aliança do bolso e olhei-a de perto, percebendo o que havia nela escrito: "Miguel e Noemi".

O velho se chamava Miguel, e Noemi provavelmente havia sido a sua mulher. Coloquei a joia de volta na mesa e saí da casa sem fazer barulho.

De verdade, eu não sabia o que havia acontecido.

O que havia acontecido comigo?

Eu havia descoberto o amor?

Eu estava liberto?

Estava perdoado?

Decerto, não sabia se teria essas respostas tão rápido.

Contudo, criara-se uma firmeza em mim desde aquele dia: eu não seria a mesma pessoa.

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