Não lembro mais do meu corpo. Há uma distância desmedida entre eu e eu. Já faz algum tempo que o ofertei às cadeiras que aceitaram com todo gosto a proposta de degradá-lo minuciosamente, sem que eu percebesse. Não estou só nisso. Há muitos que compartilham desse mesmo desespero. Para disfarçar o erro de um corpo sem espaço, a indústria me concedeu belas roupas nem sempre com as devidas proporções, cirurgias plásticas parceladas, revistas de beleza a R$1,99 e uma invenção virtual gentil que serve tão cinicamente, como nenhuma outra, para tratar imagens assimétricas de qualquer rosto desfigurado, inclusive o meu, quando tiro fotografias para expor numa das minhas redes de relacionamento.
Acabo de receber uma visita importuna da vizinha ao lado que cisma em pintar as unhas todos os dias no seu curto horário estipulado para o almoço, e que ao fim da tarde toca a minha campainha para poder exibir suas novas cores. Ela tentou me convencer a caminhar pelo Shopping Center inaugurado há três semanas, pois queria conhecer o lugar novo, que sabemos nada ter de novo. Mas... caminhar, embora possa ser uma prática positiva e de muito orgulho para muitos contemporâneos, ainda não é a atividade predileta de quem consome congelados. Julgo melhor ficar aqui. Não preciso ter muitos sentidos, já que toda a minha habilidade está fadada a ponta dos meus dedos. Aperto os botões do forno microondas, do teclado do notebook, da batedeira, do liquidificador, da máquina de café, do ventilador... O excesso de escolhas me trouxe a angústia irreparável. Aquela que chega, bate, xinga e faz estragos. É com os mesmos dedos que seguro o vício, um manjado copo abraçado ao álcool, que perambula entre meus dedos, para se juntar ao gelo. Tanta coisa se faz com as pontas dos dedos... E tudo o que os dedos fazem é buscar promessas para ganhar mais tempo a ser utilizado com outros produtos digitais, feitos para atender a exigência que se faz de felicidade. Graças à mania de escravizar meus dedos, aniquilei toda a inteligência que restava do meu corpo.
Ofegante, desço as escadarias do prédio em que moro para poder jogar o lixo e noto que realmente era melhor sair de casa, respirar. Por isso, paro, penso e resolvo utilizar outra vez meus dedos para mover as chaves do carro. Novamente estou entregue a uma cadeira, agora ordinariamente estofada. Sinto-me cansada, como se tivesse em meus ombros todo o peso daquilo que passou pelos meus dedos sem ao menos quebrar as minhas unhas. Meus olhos tropeçam painéis comerciais em escassos terrenos baldios que calham à avenida. Há tempos que não enxergo mais. Meus olhos estão lentos, acomodados como meu corpo e não se preocupam com isso. O caminho que sigo é rumo ao centro de compras. Decidi que iria até lá sozinha, sem ninguém para apontar meus fracassos, pois precisava buscar algo novo para meu corpo, coloquei meus dedos em repouso, provisoriamente dei a eles alforria.
Enfim chego, deparando-me com inúmeras pessoas ornadas em seus figurinos. Vago pelo seu corredor mitológico, e eis que imediatamente me surpreendo. Logo nos primeiros passos, vejo aquilo que foi feito a minha imagem e semelhança, um manequim desprovido de vestes, que confesso, me causou uma admiração inquietante. Desnudei nesses meros segundos meus maus olhos para contemplar a perfeição de um corpo artificial, carente de mercadoria, que me fez olhar para mim, carente de alma e de corpo. Fitava meus olhos dizendo com suas várias vozes coisas maravilhosas... Não me contava mentiras, não me fazia promessas, apenas aceitava meu corpo tão feio, medíocre e abandonado ali tão próximo. Queria estar igual, longe de máscaras e com todo o meu corpo presente do qual senti saudades imensas. Olhava-me de modo tão complacente e malicioso que me senti seduzida. Da mesma forma que aquele objeto era apenas ele mesmo, também quis ser eu mesma. Parei extasiada frente à vitrine enquanto ingenuamente tentava tocar este objeto através do vidro. E não conseguia me desfazer daquela realidade que me lançava ao extremo. Senti inveja daquela invenção. Tuas aspas eloquentes perfuram a minha ansiedade. Então que fuja de mim meu nome e sobrenome. Cansei de ser número, carne, mãe, madura, mulher. Devo expelir a roupa que esconde o que excesso de trabalho dos dedos diz sobre meu todo insinuado, a pele ditadora que tanto quer tagarelar sobre mim. Diz se devo ser rica, descolada, séria, se aparento dar comida aos andarilhos, se falo com a gramática dos doutores.
Aquele boneco me cobrou a liberdade, devolveu meu corpo. Foi diante dessa descoberta, que dos dedos das mãos aos pés, me descobri, sim eu me despi.
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Liberdade
Short StoryEstar preso ao seu próprio corpo talvez seja uma das questões mais angustiantes da ânsia pela liberdade. É nesse conflito de corpo-desejo-alienação, que o monólogo de uma mulher divaga rumo ao encontro e descoberta de si mesma. Conto vencedor do II...