O binóculo desfocado.

107 4 0
                                    


Mais um verão “comemorando” meu aniversário no acampamento Flor do sul. Todos os anos minha família vem para cá com algum pretexto para sentir o cheiro da floresta e pôr os pés na areia, mas a verdade é que nunca gostei de estar no meio de tudo isso.
— Eliza, venha para fora, têm uma surpresa especial esperando por você. — Disse mamãe abrindo o zíper da barraca.
— Mais algum bicho “exótico” que tenho de ver?— Desdenhei.
— Não seja tão manhosa... é alguém que você gosta!
— Como se já não visse a vovó o ano inteiro.— Balbuciei antes de me levantar e seguir com Mamãe.
Passamos por todas as cabanas e cruzamos a área alimentar, que na verdade não passava de várias mesas com tocos de madeira como assentos.
Ao fim das mesas avistei tio Elijah acompanhado de um garoto que me parecia familiar.
— Eliza!—Titio exclamou e correu para me dar um abraço.
Recebi seu abraço quase sem acreditar que ele realmente estava aqui, Tio Elijah passava quase todo o seu tempo explorando os lugares mais remotos da terra, por isso, era quase impossível vê-lo durante praticamente todo o ano.
— Viemos especialmente para comemorar seu aniversário.
  Titio desviou o olhar para o garoto que ele havia trazido, o menino carregava um sorriso sútil e simpático no rosto .
— Este é o meu afilhado Enzo.
Me desfiz dos braços de Tio Elijah para olhar melhor o visitante. Costumava brincar com ele quando criança, mas não tinha muitas memórias de sua pessoa. Enzo aparentava ser um ou dois anos mais velho que eu, sua pele era tão branca quanto a neve—o que me fazia questionar o porquê dele estar num acampamento ensolarado e quente.— seus olhos eram tão azuis quanto os meus, seu cabelo era tão claro como raios de sol e parecia ser perfeitamente arrumado e ainda era dono de um porte atlético impecável.
— Sou a Eliza.—O cumprimentei num tom estranho.
— Eu sei, Elijah me contou tudo sobre você.— Enzo sorriu me examinando com os olhos.
  Houve um silêncio estranho enquanto eu repensava o que ele havia dito, entretanto Enzo logo tratou de quebrar:
— Tenho certeza que ela vai gostar do presente.— Falou ele encarando Tio Elijah.
—Presente? —Indaguei.
—Trouxe algo especial da minha última viagem a Amazônia para você.
Amazônia? Algum instrumento indígena, pensei. Tio Elijah sacou uma caixa brilhante de dentro de sua mochila e entregou cuidadosamente em minhas mãos.
O olhar de todos pairavam sobre mim em expectativa de descobrir o que havia ali dentro. Abri a tampa com todo cuidado e me deparei com um binóculo, o retirei da caixa e comecei a examina-lo ainda com cuidado.
— Não é ótimo?—Elijah perguntou com um brilho ansioso no olhar.
— Esperava sapatos novos, mas é interessante. —Afirmei sinceramente.
— Queria lhe dar algo que combinasse com a ocasião. Agora você pode explorar os arredores como eu faço em minhas viagens.
— Explorar o quê? Acho que não há nada de interessante por aqui. Nós visitamos este lugar várias vezes ao ano e nunca vi nada que chamasse minha atenção.
— O único lugar que você visita é a sua barraca, mocinha.— Meu pai interveio.
Ouvi uma risada contida sair da boca de Enzo, mas não me importei.
— Eu tive uma ideia, Enzo poderia leva-la em um passeio ao redor do acampamento! Vocês podem colher flores, examinar pegadas e ainda trocar um papo legal! —Minha mãe fez um sinal jocoso com as mãos.
  Enzo ia dizer algo, entretanto Tio Elijah o interrompeu.
— Ele vai adorar passar um tempo com alguém da idade dele e nós podemos pôr o papo em dia... e além do mais essa floresta não é das mais densas, vocês ficarão bem.
  Olhei para Enzo a espera de alguma resposta. Não gostava da ideia de entrar na floresta, mas odiava ainda mais ficar fechada naquela barraca ouvindo os adultos fofocarem.
— Será um prazer. —Enzo passou por mim dando um leve toque em meu braço para que eu o seguisse.
  Acompanhei Enzo floresta adentro, quando nos distanciamos o suficiente para não sermos ouvidos ele começou a falar:
— Eu andei observando e parece que você não gosta muito daqui não é?—Enzo diminuiu os passos para caminhar ao meu lado.
— É, quando era criança achava que isso aqui era o paraíso.
— E não acha que é mais... por quê?
— Depois que se cresce tudo parece tão pequeno e besta.
— Não é besta para mim.— Replicou Enzo.
— Não quis ofender. —Respondi incerta.
— Olhe ao seu redor, isso é maravilhoso! —Disse ele já segurando meus ombros.
  Com o binóculo em mãos resolvi procurar algo através dele, mas quando o pus diante de meus olhos mau enxerguei as formas das árvores, o binóculo parecia desfocado.
— Não entendo, por que Elijah me daria uma coisa quebrada?
— O que há de errado?— Enzo chegou mais próximo de mim afim de pegar o binóculos.
— Parece desfocado.—Disse entregando o objeto em suas mãos.
— Talvez as lentes tenham arranhado durante a viagem.
Enzo olhou para todos os lados possíveis até que parou em algo atrás de mim, logo um sorriso estampou seu rosto por trás das grandes lentes.
—Tem algo naquela direção. —Enzo apontou me devolvendo o binóculo para que eu também olhasse.
  Apesar do desfoque total das lentes era possível enxergar uma luz que brilhava constantemente.
— Há casas naquele lado?
— Não são casas!
Enzo partiu a encontro da luz em uma corrida usando toda a sua velocidade,  eu tentei acompanha-lo, mas a desvantagem era notável. Nunca fui familiarizada com exercícios físicos, já ele parecia ter nascido para aquilo.
— Enzo espera!—Gritei já sem ar, porém, ele não me ouviu.
— É um lago!
  Instantes depois consegui alcança-lo.
— Não fazia ideia de que havia um lago aqui. — Exclamei exasperada.
— Você acha isso aqui pequeno demais mas mal conhece o lugar!— Ele disse e em seguida me empurrou no lago.
Caí na água quebrando o silêncio do lugar como uma bola de canhão. Me levantei sutilmente e puxei Enzo pelo braço. Ele mau se molhou, seu cabelo ainda permanecia ileso mas não se importou com suas aparência e resolveu mergulhar de uma única vez.
— Vejo que um sorriso finalmente apareceu no seu rosto.—Enzo implicou voltando para perto de mim.
— Seu idiota! — Com uma das mãos lancei água na direção de seu rosto.
A água atingiu seu rosto como tapas que fizeram seu cabelo escorrer pelo rosto, Enzo o arrumou para trás num gesto rápido para revidar ao meu ataque, entretanto, quando tentei me esquivar caminhando de costas acabei por tropeçar em algo e caí brutalmente dentro do lago.
— Eliza!—Enzo gritou e correu para me levantar.
Escorreguei algumas vezes de suas mãos por conta de sua roupa encharcada, mas ele me tirou do lago erguendo meu corpo em seus braços. 
— Eliza, está tudo bem?—Perguntou já me pondo sentada na beira do lago.
— Tropecei em alguma coisa, talvez um tronco ou algo assim.— Desviei o olhar para ele, parecia preocupado.— Estou bem, obrigada por ter me salvado.
— Salvaria sempre que puder. —Ele balbuciou, porém ouvi perfeitamente.
— Meu corpo dói um pouco por conta da queda.
Enzo sentou ao meu lado, perto de mais para que eu observasse que seus lábios pareciam com o formato de um coração, sem querer soltei uma risada fraca e ele olhou imediatamente para mim.
— Algo de errado?
Fiz que não com a cabeça.
— Há muitas coisas interessantes nesse lugar— ele começou olhando para mim—e algumas das coisas são belíssimas.
Percebi que Enzo estava a fazer uma referência a mim, sorri com o elogio sem jeito.
— Se você me deixar...— Enzo inclinou sua cabeça para perto da minha, seus olhos focavam em meus lábios.
— Não vai parecer estranho?—Perguntei baixo o suficiente para não estragar o momento.— Você é praticamente meu primo.
— Praticamente. Seu tio namora com a minha mãe, não somos mesmo primos.
Depois de uns instantes de um silêncio enlouquecedor fiz um “sim” mínimo com a cabeça. Enzo tocou minha bochecha com uma das mãos e com a outra tirou parte do meu cabelo encharcado de meu rosto, quando finalmente avançou para o beijo...

— Eliza! —Mamãe me sacudia na cama para que eu despertasse.
Com um salto me sentei de frente para ela.
— Mamãe?
  Olhei ao redor e ainda estávamos no meu quarto, tudo no acampamento havia sido sonho.
— Seu Tio Elijah está esperando na sala junto ao afilhado dele... —Levantei e corri aos pulos para sala.
Tio Elijah já me esperava com aquela caixa brilhante em mãos, desviei o olhar um instante para seu afilhado que retribuiu com um sorriso.
— Trouxe de uma viagem recente.—Notificou Elijah antes de me ver abrir a caixa.
Era mesmo um binóculo.
— Adorei!—Exclamei e todos riram.
— Estávamos pensando onde comemoraríamos o dia de hoje e achamos justo que você decida, pois o aniversário é seu.
Sem pensar duas vezes respondi:
—O acampamento!
  Papai riu no fundo da sala enquanto todos me encararam tentando compreender.
— Eliza o que deu em você?!— Mamãe questionou com aquela velha pulga atrás da orelha.
— Quero usar meu novo presente.— Ergui o binóculos com uma das mãos.—Tio Elijah e seu afilhado também poderiam ir, seria um programa em família!
— Claro que iremos. —Elijah respondeu enquanto seu afilhado fazia um gesto empolgado de “sim” com a cabeça.
— Então está decidido, vamos passar o fim de semana no acampamento!— Mamãe deu a última palavra.

O binóculo desfocadoOnde histórias criam vida. Descubra agora