A montanha falante

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Você certamente já viu um gato, ou mesmo um cachorro, tentando caçar a própria cauda. Isso é comum. Mas, talvez, se visse um leão tentando caçar a própria cauda, e essa cauda, fosse, na verdade, uma serpente, você não achasse tão comum assim. Acontece que no Mundo Além Daqui, tal conceito se mostra mais elástico. O que torna a cena supracitada bastante razoável, especialmente quando se encontra um Nue.

Um Nue se trata de espécie de Híbrido. Preste bem atenção, pois suas misturas são numerosas. Primeiro, a juba relvada é leonina, mas o rajado que lhe percorre a pelagem remonta a outro parente felino: o tigre. Depois, sua face, ainda que grande e rígida, exibi o focinho chapado típico dos símios. A coisa, porém, torna-se mais interessante às escápulas, que sustentam a envergadura de uma asa rica em penas. E, claro, por fim, como já havíamos citado, a cauda não era bem uma cauda, mas uma serpente, de olhos amarelos tão descorteses quanto os da outra cabeça.

Claro que um Nue nunca se voltaria contra sua cauda pelo mesmo motivo dos gatos que temos em casa. Ele o fazia porque, frequentemente, ambos entravam em discordância.

Observando o fato, um amontoado de pedra e lodo, que deitava à beira-rio, ergueu-se de sua sonolência. Mostrava muita curiosidade. Principalmente porque a discussão entre as cabeças do Nue era a respeito de uma Montanha Falante. Ele, carregando consigo muitas das raízes e plantas que cresceram entre as juntas de estátua ao longo de muitos ciclos solares, iniciou uma caminhada desengonçada até o Híbrido, parecendo um bebê que a pouco deixara de engatinhar. Tratava-se de um Golem, criatura invocada, ou mesmo criada, por alguma entidade. Ele se compunha exclusivamente de pedras e seixos — ainda que costumasse a se fundir com a paisagem circundante, pois hibernava por longos períodos.

— Perdões, mil duzentos e vinte sete perdões — não disse o Golem. Isso mesmo, não disse, pois Golens não têm boca de falar. Eles se comunicam por espécie de telepatia. — Eu ouvi vocês conversarem sobre a Montanha Falante.

— Não há Montanha Falante alguma — rosnou o leão. — Quanta bobagem! Se a montanha fosse falante de verdade, ela poderia falar sem magia alguma.

— Deixa de ser cabeça dura — sibilou a cobra. — A montanha pode, muito bem, ser falante e não querer falar nada. Isso é claro como os Dois Sóis que estão ao céu, mas você é turrão e quer se fazer de cego.

O Golem coçou o musgo que tinha sobre a cabeça. Era mesmo uma discussão confusa. Mas ele tinha algo a acrescentar.

— Eu sou o Golem guardião da Montanha Falante, e posso lhes assegurar que ela é falante. Mais falante do que eu próprio o sou.

— Ora, isso quer dizer muito pouca coisa — desdenhou o leão.

Eles se encontravam em um pequeno bosque. Lá, havia as belíssimas árvores-de-todos-os-frutos e, mais além, de frente para o riacho, crescia uma montanha de encosta cinzenta e topo verdejante. Era para onde caminhavam.

— Isso quer dizer que ele sabe mais do que você, peso morto.

A serpente, então, picou-o ao dorso, e isso irou o leão que voltou a caçá-la, esticando o quanto pôde o seu robusto pescoço. Os dois permaneceram assim, girando e girando, às vezes até mesmo voejando, até caírem tontos ao chão.

— Eu digo que ela é falante e acrescento: só fala coisas sábias — garantiu o Golem. — Mas o que querem com ela?

— Não está claro? — resmungou o leão, ainda deitado e confuso. — Queremos nos separar um do outro. Disseram-nos que a tal Montanha Falante, que é muda (nunca vi coisa parecida), pode nos dizer como o fazer.

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⏰ Última atualização: Sep 30, 2016 ⏰

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