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— Precisamos conversar — Michael Lee me disse de um jeito firme quando saí do provador improvisado no bazar de usados da St. Jude, que era feito de quatro cortinas de trilhos dispostas em um quadrado, diante de um espelho embaçado.            
      Eu não disse nada. Só olhei para seu reflexo, porque ele era Michael Lee. Michael Lee!
      Ah, Michael Lee! Por onde começar? Os garotos queriam ser como ele. As garotas o queriam. Ele era a estrela da escola, do palco e do campo de futebol. Tinha cérebro o bastante para disputar com geeks, era o capitão do time de futebol diante do qual todos os esportistas se ajoelhavam e seu falso moicano mais seu All Star cuidadosamente desgastado também lhe permitiam andar no meio da galera indie. Se isso não bastasse, seu pai era chinês e ele tinha certo ar exótico euro­-asiático. Ele era tão lindo que havia até mesmo uma ode às maçãs de seu rosto na parede do banheiro feminino do segundo andar da escola.
     Ele poderia ser tudo isso e mais um saco de bambolês, mas, até onde eu sei, se você é um daqueles tipos populares que se relacionam com absolutamente qualquer pessoa, você não consegue ter um estilo. Para ser tudo para todas as pessoas, Michael Lee teve que se tornar a pessoa menos interessante em nossa escola. Isso deve ter lhe dado algum trabalho, já que nossa escola esbanjava mediocridade.
      Eu não conseguia nem imaginar por que Michael Lee estava ali, diante de mim, de queixo empinado, insistindo que precisávamos ter uma conversa. Tão à minha frente que eu tinha uma vista privilegiada de suas maçãs do rosto inspiradoras de poetas. Também podia ver suas narinas um pouco acima, porque ele era assustadoramente alto.

      — Vá embora — disse com uma voz entediada, estendendo minha mão languidamente em direção à saída do salão da igreja. — Porque posso garantir que você não tem nada a dizer que eu gostaria de ouvir.
      Isso podia, facilmente, mandar a maioria das pessoas de volta ao lugar de onde vieram, mas Michael Lee só me deu aquele olhar, como se eu fosse toda fumaça e arrogância, e então se atreveu a colocar a mão em meu ombro para que pudesse virar meu corpo rígido e servil para ele.
       — Veja — disse ele, sua respiração contra meu rosto, o que me fez recuar. — O que há de errado com essa imagem?

      Não conseguia me concentrar em outra coisa senão em Michael Lee e seus dedos quentes de jogador de futebol americano, além de escritor de redações premiadas, em minha clavícula. Aquilo era um erro. Muito mais que um erro. Era um mundo de erros. Mantive meus olhos fechados em protesto e, quando os abri novamente, estava olhando para Barney — eu o deixara no comando de minha barraca, apesar de não ser uma boa ideia —, que estava conversando com uma garota.  

       Não era uma garota qualquer, mas Scarlett Thomas, que calhava de ser a namorada de Michael Lee. Não que eu tivesse isso contra ela. O que eu tinha contra ela é que ela era sem graça e tinha uma voz muito irritante, ofegante e infantil, que surtia o mesmo efeito em mim que o de alguém mastigando cubos de gelo. Scarlett também tinha cabelos loiros e compridos, que passava horas penteando, hidratando, ajeitando e jogando de um lado para o outro, por isso, se você estivesse atrás dela na fila do almoço, tinha uma boa chance de ganhar um bocado de cabelo como acompanhamento extra.
        Ela estava jogando o cabelo para trás naquele instante, enquanto falava com Barney, e, sim, ela estava dando um sorriso vago e Barney estava sorrindo e abaixando a cabeça, a maneira como ele agia quando estava envergonhado. Não era uma imagem que fazia meu coração pular de alegria, porém, mais uma vez...
       — Não há nada de errado com essa imagem — eu disse a Michael Lee. — É apenas sua namorada conversando com meu namorado...
     — Não é a conversa...
     — ... sobre equações do segundo grau. — Ou sobre uma das muitas outras coisas que Scarlett não entendia, o que a levara a ficar reprovada em Matemática, no Ensino Médio, e ter que refazer a matéria. Olhei bem séria para Michael. — Foi por isso que a Sra. Clements pediu a Barney para ser tutor de Scarlett. Ela não lhe contou?
       — Ela contou, e não é o fato de eles falarem um com o outro que está errado, e sim como eles não estão falando. Estão apenas ali, fitando um ao outro — ressaltou.
       —Você está sendo ridículo! — eu disse, enquanto olhei disfarçadamente para onde Barney e Scarlett estavam, de fato, fitando um ao outro. Era óbvio que eles estavam se encarando porque não tinham o que dizer, e isso era constrangedor; isso de se fitar nervosamente, porque não têm nada em comum. — Não há nada, nada, nem mesmo uma única coisa rolando. Bem, nada além de você e Scarlett estarem circulando entre os pobres em um bazar de usados — completei, voltando minha atenção para Michael Lee. — Certo, agora que já esclarecemos isso, sinta­-se à vontade pra ir cuidar de suas coisas.
      Michael abriu a boca como se tivesse algo mais a dizer sobre todo o não acontecimento entre Barney e Scarlett, que, agora, faziam caretas um para o outro. E então, fechou­-a novamente. Esperei-o sair para que pudesse cuidar das minhas coisas, mas, de repente, ele se moveu para ainda mais perto de mim.
        — Há algo acontecendo entre eles — disse, inclinando a cabeça. Senti sua respiração nas minhas bochechas. Eu queria me abanar com um gesto irritado. Ele se endireitou. — E belo vestido, a propósito.
         Percebi, por seu sorriso no rosto, que ele não queria dizer aquilo, o que me fez pensar se Michael Lee poderia, na verdade, ter algumas qualidades ocultas enterradas muito abaixo da superfície de seu exterior raso.
     Funguei alto e desdenhosamente, o que fez com que aqueles lábios tão peculiares se abrissem num sorriso franco antes que ele se afastasse.
      — Jeane, meu amor, não leve a mal, mas ele estava sendo sarcástico. Esse vestido não é nada bonito — disse uma voz aflita à minha esquerda. Eram Marion e Betty, duas voluntárias da comissão social da St. Jude que cuidavam da barraca do bolo e policiavam os provadores. Apenas um de seus olhares severos poderia assustar o pervertido mais determinado. Eu não duvidava de que elas bombardeariam, com pedaços de bolo, qualquer um que tivesse olhos curiosos; isso caso seus olhares severos falhassem.
        — Eu sei que ele estava sendo sarcástico, mas ele também está muito enganado, porque esse vestido é totalmente incrível — eu disse, dando um passo para trás para que pudesse me contemplar novamente, embora meu coração não estivesse realmente ali naquele momento.
        O vestido era preto e eu normalmente não usava preto porque, oras, por que alguém ia querer usar essa cor quando havia tantas cores fabulosas no mundo? Somente pessoas sem imaginação — e os góticos, que não ficaram sabendo que os anos 1990 já tinham acabado. Mas o vestido não era somente preto; tinha alguns padrões horizontais, linhas onduladas amarelas, verdes, azuis, vermelhas, roxas, alaranjadas e cor­-de­-rosa que me causavam coceira nos olhos, e se ajustava tão bem ao meu corpo que poderia ter sido feito exclusivamente para mim, o que não acontecia muitas vezes, pois tenho um corpo muito estranho. Sou pequena, não meço mais que 1,50 metro, e compacta, de modo que posso até vestir os tamanhos de criança, mas fico meio robusta com essas roupas. Meu avô costumava dizer que eu parecia um pequeno pônei, isso quando não estava me dizendo que as garotas devem ser vistas e não ouvidas.

OS ADORÁVEISOnde histórias criam vida. Descubra agora