FÁBULA NEGRA
Esta é a história do nascimento de um deus.
Como não poderia ser diferente, tudo aconteceu em um tempo de guerra e destruição. Um tempo no qual nações e fronteiras não mais existiam. As diferentes culturas, vestígios de outrora, fundiam-se em um único caldeirão instável e o mundo era um vasto campo de batalha. Divindades caminhavam pelos destroços ou se esgueiravam nas sombras de imponentes cordilheiras; se escondiam em densas florestas e negociavam com os homens, e a lei vigente era a da força. Todos os tribunais julgavam pela espada.
O deus em questão nascera homem, e se chamava Kaluanã. Era o braço direito de um poderoso conquistador conhecido como Ubajara, senhor de incontáveis súditos e general de um exército temido por não mostrar misericórdia.
Tal reputação infame era o motivo pelo qual pavor inquietava o bando armado que guardava as muralhas de Arinos, uma cidade próspera, antro de pensadores e artistas, mas cujos conhecimentos de nada valiam diante da selvageria da guerra. O bando era constituído de mercenários, alguns até experientes e talvez por isso mesmo, temerosos. Eles sabiam do que o cruel Ubajara e seus homens eram capazes de fazer em batalha e por isso hesitavam, três fileiras trêmulas de escudos sob o sol a pino de um dia escaldante, uma barreira sofrível diante das muralhas da cidade em uma última tentativa de defendê-la.
A cinquenta metros de distância, Ubajara desmontava seu cavalo, as botas de couro de serpente socando as rachaduras do chão árido como estacas, levantando poeira. Kaluanã, seu mais competente guerreiro, desmontou logo em seguida, assim como a irmã do líder, uma talentosa feiticeira chamada Naara. A mulher cobria o corpo jovem com uma túnica negra, que ostentava placas de couro endurecido nos ombros e no dorso. Às suas costas, levava um bastão fino ornamentado com runas que os guerreiros sabiam ser terríveis mantras cabalísticos. Seu rosto se escondia atrás de uma pintura de guerra fria, traços avermelhados sobre camadas de branco.
Ubajara normalmente não aprovava mulheres à frente de batalhas, mas sua irmã caçula era uma exceção. Naara nascera com o dom da magia e seus encantamentos davam sorte e confiança aos mais de duzentos homens que se postavam atrás dos três, uma multidão de lanças, escudos, espadas curvas e retilíneas, gastas de tanta matança, mas ainda sedentas por mais.
A cada cidade conquistada, escravos aderiam ao bando, mulheres eram estupradas, ouro saqueado e reputações solidificadas.
─ Olhe só pra eles. – Murmurou Ubajara ao inspirar o vento seco. Estavam em uma vastidão infértil que seguia até onde os olhos podiam ver. A cidade de Arinos era como um oásis em meio a arbustos ressecados, terra estéril e crânios de gado espalhados pelo terreno, uma plateia de fantasmas.
Kaluanã aproximou-se de seu senhor. Guerreiro habilidoso, vestia uma manta de couro fina, com um capuz jogado para trás, deixando as mechas duras e embaraçadas de cabelos negros ao sol. Seu rosto brilhava oleoso e gotas de suor escorriam por sua barba crespa. Carregava duas espadas leves em bainhas cruzadas em X nas costas e não tinha escudo.
─ Isso será um massacre. – Confessou o subordinado.
Ubajara sorriu ao ouvir de seu guerreiro mais astuto o que já lhe era óbvio. Em seguida, reuniu uma massa de catarro na boca com um som grotesco de saliva e cuspiu no solo, provavelmente a única irrigação que aquela terra via em muito tempo. Disse:
─ Me sinto piedoso hoje.
E então o comandante caminhou deliberadamente em direção à farândula que bloqueava o caminho de seus homens até a cidade. Naara e Kaluanã trocaram olhares sisudos, sem nada dizer.
Ubajara parou quando estava perto o bastante para ser ouvido pelos inimigos e então bradou:
─ Quantos vocês são? Cinquenta? Setenta? Vejo em seus olhos que não querem morrer hoje, e não precisam. Meus homens são guerreiros experientes e irão matá-los antes do anoitecer! Faço, então, uma proposta sensata: lutarei contra o melhor dentre os seus. Se eu vencer, todos vocês entregarão as armas e nós tomaremos sua cidade. Se eu perder, meu exército dará meia volta e não mais os incomodará!
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Fábula Negra (conto)
FantasyUm conto de 'Espada e Feitiçaria' que ficou de fora da antologia para a qual foi enviado. Tentei criar uma mitologia que unisse elementos já tradicionais daquele estilo de literatura com outros, novos, inspirados em características e paisagens tupi...