II SOLFIERI

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...Yet one kiss on your pale clay
And those lips once so warm — my heart! my heart!
Cain. Byron

— Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto
a amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que
mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!
— Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão pôr aquele céu morno, o fresco
das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte
de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se
escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma
forma branca. — A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como
gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto
se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um
como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando a
nênia das flores murchas da morte.
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas.
Não viu a ninguém: saiu. Eu segui-a.
A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas: apenas eu
sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar:
em torno dela passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a
criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma
cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e
repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia numcanto suavíssimo...
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade
me vinha aquela visão...
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara. Dei um último
olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo
ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei
apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios
daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos
entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o
de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e
embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram
uma idéia perdida. . — Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu
achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...
Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, “do cadáver sem cabeça e o homem sem coração” como a conta
Brantôme? — Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim:
rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela.
A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei em
perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à
convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os
como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a
morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara
uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou…
Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro;
sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos
braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo;
abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido de
fechar a porta .
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.
— Que levas aí?
A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.
— É minha mulher que vai desmaiada...
— Uma mulher!... Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de cadáveres?
Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.
— É uma defunta...
Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida ainda.
— Vede, disse eu.
O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar
de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...
— Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.
Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a moça ia despertar.
Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço.
Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de
medo...
Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros que voltavam
da orgia. Reclamaram que abrisse.
Fechei a moça no meu quarto, e abri.
Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem minha ausência.
Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a insânia, e frio
como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la.
Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve como sanar-lhe aquele delírio, nem
o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.
A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma
estátua dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei aí um
túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a
adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre
ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam. Um dia o estatuário me trouxe a
sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...
— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu
cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?
— E quem era essa mulher, Solfieri?
— Quem era? seu nome?
— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima assaz os lábios?
quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem
há dele mister por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo
braço.
— Solfieri, não é um conto isso tudo?
— Pelo inferno que não! por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que era a bela
Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés
na sua cova de terra, eu vô-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Hei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
—Vede-la murcha e seca como o crânio dela!

Noite Na Taverna - Álvares De Azevedo Onde histórias criam vida. Descubra agora