->Livro 1| Capítulo 0<-
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Gotículas de orvalho riscavam vagarosamente as folhas da copa de um alto sicômoro, tornando-as úmidas comparadas ao cenário seco e quente que as rodeava, sinal de que um breve chuvisco havia ocorrido, até que o antes angelical silêncio foi rompido, murmúrios podiam ser escutados entre os belos sons da natureza, um mar de gatos se reunia em frente a grande árvore.
Eram os primeiros minutos de uma Assembleia, e mais e mais gatos se aproximaram dos pés do Grande Sicômoro.
Quatro gatos se equilibravam habilidosamente sobre os firmes galhos; exceto pelo líder do Clã das Sombras, que continuava desacostumado com as alturas e, gesticulando com sua grossa cauda, resmungou:
— Estrela Malhada, tem certeza que já não é hora de nos explicar o porquê de estarmos reunidos aqui? — Miando e provavelmente segurando a frase; "e totalmente fora do horário e data original de assembleias".
O gato rajado próximo à ele limpou a garganta com uma leve tosse, olhando para o outro líder e para a multidão.
— Como todos vocês sabem, acabamos de perder as Quatro Árvores para um grupo de forasteiros... Ou melhor, malandros... E não devemos deixar barato, nossas assembleias ocorreram lá por gerações e gerações! —Sibilou, encontrando com os olhares de indignação da multidão.
—Pois bem, —Começou o gato rajado — Não podemos deixar tal tradição sagrada ser quebrada por causa de míseros desconhecidos e mal-intencionados; e por isso convoquei todos aqui para propor uma solução para este problema–
—Sem mais delongas: Desembuche! —Exclamou o líder do Clã das Sombras, sua testa franzida enquanto os dedos de suas patas tamborilavam contra a grossa casca de madeira do galho em que se espreguiçava.
Bufando enquanto seus olhos rolavam em certo protesto de aborrecimento, o gato malhado se ajustou levemente, e com um breve rebuliço com sua cauda, tomou a voz:
—Antes de ter a opinião de todos sobre isso, gostaria de ter o mínimo de silêncio. —Seu tom, mesmo meio neutro, provocou que o tumulto sob seu alerta desintegrasse momentaneamente para ouvir as palavras que segurava em sua garganta e que buscavam liberdade. Após breve espera, retomou: —Clãs, e seus gatos, proponho união para lançarmos um ataque sobre esses gatos – a "Legião". Poderíamos dividir o mesmo campo, num lugar só, trocando conhecimentos e táticas de ataque, isso também aumentaria nossa prosperidade quando o inverno chegasse, mais patas para caçar presas para satisfazer a nossa fome depois da guerra!
O líder do Clã das Sombras riu. Aliás, todos riram.
Para eles, era um absurdo, para Estrela Malhada e seus seguidores era revolução, progresso.
Mas continuavam rindo, incrédulos.
Para eles era uma piada. Uma. Mera. Piada.
—A "Legião"? —Murmurou uma gata laranja e branca, e pelo forte cheiro–não, odor –de peixe, se dava que ela liderava o Clã do Rio.
Jogando sua cabeça levemente para trás e descansando-a em seu ombro, olhando brevemente para ela, retrucou: —Sim, e apesar de não soar tão assustador, eles não estão brincando conosco. —Seu tom caiu grave, sua expressão facial severa enquanto cada palavra esvaziava sua boca.
Não demorou muito até que os outros líderes tocassem na questão de sua proposta novamente, afinal, para eles soava, de novo, como um absurdo e queriam expressar seu protesto sobre isso, seria com um miado grave ou um sibilo, até mesmo simplesmente um olhar de reprovação.
Os olhares amargos vieram da maioria, seja da multidão ou dos outros gatos que esperavam sua vez de reportar o que havia ocorrido no dia-a-dia de seu Clã. E um grisalho gato cinza-escuro deu um passo para avançar para frente, se aproximando em movimentos vagarosos e sentou-se perto de Estrela Malhada, e apesar de que seu olhar de sabedoria agora transmitia certa amargura, isso não deixou o líder do Clã do Trovão arrepiar, nem um pouco, os pelos de Estrela Malhada, que só balançou a cabeça em saudação ao gato mais velho.
Num breve momento no qual para os Clãs pareciam luas e luas de uma longa eternidade e delongas, o idoso gato finalmente deixou um miado sair da prisão de seu focinho.
—Não consigo expressar o quanto discordo, para mim não importa o quanto ache a sua ideia útil, isso quebra todas as tradições que nossos ancestrais entregaram à nós! Quatro clãs, quatro acampamentos, assim que sempre foi, assim que sempre será! —Miou alto, praticamente latiu e esperou pouco até que seu Clã gritasse em estridentes tons demonstrando o quanto concordavam.
E quanto concordavam, não poucos, mas a maioria desaprovava a proposta entregue à eles, o que só causou frustração aos seguidores do gato rajado. Após luas pensando e pensando uma solução para derrotar de forma justa os tais forasteiros que roubaram deles uma coisa mais sagrada que as tradições, um terço de cada território e o lugar original de suas Assembleias.
Uma leve risada tanto de descrença mas até comédia mesmo saiu de sua boca enquanto Estela Malhada olhou de volta aos outros líderes, incrédulo. Muito. Incrédulo.
E ainda mais, indignado enquanto virou para encarar, sem covardia os olhares de leve desprezo e incerteza, suas narinas dilataram pouco para deixar uma breve descarga de ar sair em um curto suspiro, e as pequenas almofadas de suas patas emitiam fricção contra a enrugada madeira, ele hesitava um pouco, mas, acalmando-se, retrucou:
—Tradição? Estamos falando de uma legião de dezenas e dezenas de gatos que teremos que enfrentar- juntos- e você se preocupa com uma tradição?
—Claro, não somos todos rebeldes obcecados com planos "revolucionários" tais como você, nós respeitamos nossos ancestrais e o que eles ensinaram. E a sua proposta é nada mais do que uma fantasia! Imagine! Os quatro Clãs "enfiados" num mísero e único campo, dividindo e compartilhando táticas que deveriam ser secretas de cada Clã e tendo que aturar um olhando para o focinho de outro lua após lua?! —Os- praticamente- gritos do velho gato quase causaram Estrela Malhada a dar uma risada enquanto observava quem já havia liderado por dezenas de luas e estações perder a compostura.
—Mas se nenhum Clã escondesse nada de outro e as fronteiras de territórios não existissem, não precisaríamos batalhar! —Acrescentou à sua resposta o felino listrado enquanto cerrou os olhos.
—Batalhar está em nosso sangue, Estrela Malhada, e se não lembra disso, não tenho mais nada à discutir, e se vier com mais uma proposta louca como esta–
Dando mais um passo adiante, indagou: —O que você vai fazer?
O líder ancião recuperou a calma: —Nada. Por enquanto.
Estrela Malhada inclinou a cabeça, à ponto de indagar novamente.
—Por enquanto porque seu plano insano ainda não é uma ameaça para meu Clã.
Com isso, o gato acinzentado lentamente levantou, deslocando-se para seu galho anterior, e com um curto gesto de sua cauda, o Clã do Trovão, de compunha parte da multidão, o seguiu, fazendo mesmo movimento antes dele anunciar com um miado grave, mas alto o bastante para todos lá ouvirem.
—Declaro esta assembleia encerrada.
Com isso, todos começaram a dispersar, era claro que muitos aceitaram a autoridade de Estrela Cinzenta, os que haviam seguido seu reinado desde que havia sido nomeado representante, junto com outras conquistas.
Mas isso, para o Clã do Vento, era passado.
E o passado já se foi.
Estrela Malhada assistiu em silêncio os outros três Clãs seguirem caminho para retornar para cada de seus acampamentos, no mesmo silêncio que entrou. E ignorando os vários olhos que carregavam preocupação, principalmente os de Salto da Corça, já que a esbelta gata creme havia passado todos os minutos da assembleia em um estranho silêncio.
Um silêncio que prosperou, porque nenhum dos dois protestaram. E com o cair da noite, o Clã do Vento se retirou ao seu Acampamento, com a mesma ausência de sons que o deixou.
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Gatos Guerreiros: Espectro
Fanfiction[Em andamento!] Para Pata de Urtiga, felicidade se encontra facilmente na simplicidade e humildade de seu Clã, um elo formado por, palavra de mesma terminação; lealdade. Um elo que é frágil, e é constantemente protegido a todo custo. Já para Eco, é...