Hoje
Nova York
Diário de Cassandra TaylorQuerido diário,
Tristan sugeriu que eu use você para ajudar a analisar os acontecimentos da minha vida que me levaram a ser o indivíduo desajustado que sou hoje. Ele quer que eu olhe para os relacionamentos insalubres que me tornaram ranzinza e
emocionalmente indisponível. Então acho que vou começar com a estrela de todos os meus arrependimentos.
Ethan Holt.
Na primeira vez que o vi, eu estava simulando sexo anal com alguém que tinha acabado de conhecer.
Ui. Isso ficou estranho.
Me deixa explicar.
Estava fazendo teste para uma vaga na Academia Grove de Artes Dramáticas,uma faculdade particular que oferece cursos de dança, música e artes visuais e
também abriga uma das escolas de teatro mais prestigiadas do país.
Fica numa propriedade em Westchester, Nova York, e na história recente formou alguns dos mais talentosos astros de teatro e televisão.
Eu sonhava em estudar lá desde sempre, então, no meu último ano, quando todos os meus amigos estavam se inscrevendo em faculdades para serem médicos,advogados, engenheiros e jornalistas, eu me inscrevi para ser atriz.
Grove foi minha primeira escolha por vários motivos, e não foi o menos importante deles ficar a um país inteiro de distância dos meus pais.
Não que eu não os amasse, porque amava. Mas Judy e Leo têm idéias bem específicas sobre como devo viver minha vida. Por ser filha única e, como tal,programada para fazer tudo e mais um pouco para ganhar sua aprovação, eu basicamente vivia para satisfazer os ideais não realistas deles.
Quando cheguei ao último ano, eu nunca havia experimentado álcool, fumado cigarro, comido nada além daquelas saudáveis merdas vegetarianas sem gosto, nem tinha dormido com nenhum garoto. Eu estava sempre em casa na hora certa,mesmo que eles me ignorassem completamente ou discutissem entre eles ou nem estivessem lá.
Minha mãe resolvia problemas. Ela sempre sentia que deveria melhorar a si mesma, ou a mim. Eu era desajeitada, então ela me matriculou em aulas de balé.
Era gorducha, então ela observava cada garfada que eu dava. Era tímida, então ela me fez frequentar aulas de teatro.
Odiava tudo que ela me forçava a fazer, exceto teatro. Isso ficou. Por acaso eu era bem boa nisso. Fingir ser outra pessoa por algumas horas? É, isso era o máximo.
As principais contribuições de Leo para minha criação consistiam em instruções estritas sobre aonde ir, quem ver e o que fazer. Tirando isso, ele me ignorava. A não ser que eu fizesse algo muito certo ou muito errado. Rapidamente aprendi que haveria menos gritaria e menos castigo se eu fizesse a coisa certa.
Tirar boas notas o fazia feliz. Assim como ganhar prêmios de interpretação e oratória.
Eu me esforçava. Mais que todos os meus amigos e mais do que uma filha deveria se esforçar para atrair a atenção do pai. É certo dizer que todos os meus bloqueios quanto a agradar pessoas vieram dele.
Meus pais não ficaram felizes com meu plano de ir para a escola de teatro,claro. Creio que as palavras exatas do Leo foram: “Uma ova”. Ele e minha mãe aceitavam o teatro como um passatempo, mas, com minhas notas, eu podia escolher profissões bem pagas. Eles não entendiam por que eu jogaria isso fora por uma profissão em que noventa por cento dos formados ficavam sem emprego
para sempre.
Convenci os dois a me deixar fazer o teste negociando sobre me inscrever também no programa de direito da Washington State. Isso me comprou um bilhete de ida e volta para Nova York e a leve esperança de deixar para trás meu costume de buscar aprovação.
Quando comecei o processo de inscrição, sabia que as chances eram pequenas, mas eu tinha de tentar. Havia outras escolas que eu ficaria feliz de frequentar, mas eu queria a melhor, e essa era a Grove.Seis anos anos antes Westchester, Nova York
Testes para GroveMinha perna está tremendo.
Não de leve.
Está chacoalhando.
Descontroladamente.
Meu estômago está revirando, dando nós e quero vomitar. De novo.
Estou sentada no chão com as costas para uma parede. Invisível.
Não pertenço a este lugar. Não sou como eles.
Eles são ousados, abusados, e parecem confortáveis falando a palavra com “P”. Fumam sem parar e tocam nas partes íntimas uns dos outros, mesmo que a
maioria deles tenha acabado de se conhecer. Eles se vangloriam das peças que fizeram ou dos filmes em que estiveram ou das pessoas famosas que conheceram. E eu permaneço sentada, menor a cada segundo, sabendo que a única coisa que vou conquistar hoje é a prova do quão inadequada eu sou.
— Daí o diretor diz: “Zoe, a plateia precisa ver seus peitos. Você diz que é dedicada à sua arte, e ainda assim seu senso errado de pudor dita suas escolhas”.
Uma loira desinibida está monopolizando as atenções, contando histórias de guerras teatrais. As pessoas ao redor parecem cativadas.
Não quero ouvir, na verdade, mas ela fala alto demais e não consigo evitar.
— Ai, Deus, Zoe, o que você fez?! — Uma bela ruiva quer saber, seu rosto se contorcendo com emoção exagerada.
— O que eu poderia ter feito? — Zoe pergunta com um suspiro. — Chupei o pau dele e disse que ia ficar de camiseta. Era a única forma de proteger minha
integridade.
Houve risadas e uma salva de palmas. Mesmo antes de entrarmos, as apresentações já haviam começado.
Joguei a cabeça para trás e fechei os olhos, tentando me acalmar.
Repassei meus monólogos mentalmente. Eu os conhecia. Cada palavra.
Dissecava cada sílaba. Analisava os personagens, subtexto, camadas de sutilezas emocionais. Ainda assim, me sentia despreparada.
— Então, de onde você é?
Zoe está falando novamente. Tento bloquear o som.
— Ei, você, menina da parede.
Abro os olhos. Ela está olhando para mim. Todo mundo está.
— Hum... quê? — Limpo a garganta e tento não parecer apavorada.
— De onde é você? — ela pergunta mais uma vez, como se eu fosse mentalmente limitada. — Dá para ver que você não é de Nova York.
Sei que o sorrisinho falso dela é dirigido ao jeans escuro e ao suéter cinza liso que estou usando, ao cabelo castanho sem graça e à falta de maquiagem. Não sou como a maioria das meninas aqui, em suas cores vibrantes, grandes jóias e rostos pintados. Elas parecem pássaros tropicais exóticos, e eu pareço uma mancha de óleo.
— Hum... Sou de Aberdeen.
Seu rosto se retorce, de nojo.
— Onde fica essa porra?
— É em Washington. Meio pequeno.
— Nunca ouvi falar — ela informa com um aceno de desprezo com suas unhas pintadas. — Tem ao menos um teatro lá?
— Não.
— Então você não tem nenhuma experiência em atuar?
— Fiz algumas peças amadoras em Seattle.
Os olhos dela se iluminam. Ela fareja uma presa fácil.
— Amadora? Ah... entendi. — Ela sufoca uma risada.
Meu senso de autopreservação é acionado.
— Claro, não fiz todas as coisas incríveis que você fez. Quer dizer, um filme Uau. Deve ter sido bem incrível. — Os olhos de Zoe se apagam um pouquinho. O cheiro de sangue é diluído pela puxação de saco.
— Foi bem incrível — ela comenta enquanto dá um largo sorriso como uma barracuda com batom. — Mas provavelmente eu estou perdendo tempo com este curso, porque não vou chegar até o final antes de fechar um grande contrato.
Pelo menos é algo para me manter ocupada até lá.
Sorrio e concordo com ela. Massageio seu ego. É fácil. Sou boa nisso.
A conversa borbulha ao meu redor. E eu acrescento um comentário aqui e ali. Cada meia verdade que sai da minha boca me torna mais como eles. Mais
provável de me encaixar.
Rapidamente, estou zurrando e relinchando como o resto das mulas, e um dos meninos gay s me puxa e finge que estamos numa rave.
Ele fica atrás de mim enquanto bate na minha bunda. Entro na brincadeira,mesmo horrorizada. Faço barulhos vulgares e balanço a cabeça. Todo mundo acha hilário, então eu ignoro a vergonha e continuo. Aqui posso escolher ser desinibida e popular. A aprovação deles é como uma droga. E quero mais.
Ainda estou fingindo apanhar na bunda quando levanto o olhar e o vejo. Está alguns metros de distância, alto e de ombros largos. Seu cabelo escuro é
ondulado e rebelde, e, apesar da expressão impassível, seus olhos mostram claro desdém. Afiado e imperdoável.
Minha risada falha.
Ele parece um anjo vingativo com um olhar intenso e traços etéreos. Pele lisa e roupas escuras.
Tem um daqueles rostos que te fazem parar quando você folheia uma revista.
Não um lindo do tipo padrão, mas um lindo do tipo hipnotizante. Como uma capa de livro que implora que você o abra e se perca na história.
Minha nova falsa ousadia pesa sob seu olhar. Ela me deixa, suja e tensa, e eu paro de rir.
O menino gay me empurra de lado e vira para outra pessoa. Perdi meu charme vulgar de popozuda.
O garoto alto também se vira e se senta com as costas para a parede. Tira um livro esfarrapado do bolso. Eu pesco o título: Vidas sem rumo. Um dos meus favoritos.
Eu me viro para o grupo barulhento, mas eles já estão em outra.
Estou dividida entre recuperar a posição e descobrir mais sobre o menino do livro.
A escolha é tirada de mim quando a porta à minha frente se abre, e uma mulher entra. Ela tem ares de estátua com cabelo preto curto e lábios vermelho-vivo, e nos avalia com o foco de um raio laser. Lembra a Betty Boop, se Betty Boop fosse intimidadora a ponto de te fazer mijar nas calças e tivesse uma prancheta de couro envernizado.
— Tudo bem, escutem.
Os cacarejos se silenciam.
— Se eu chamar seu nome vá para dentro.
Ela dispara os nomes, sua voz é clara e segura.
Quando ela grita “Holt, Ethan”, o garoto alto sai da parede. Olha brevemente para mim quando passa, e me faz querer segui-lo. Eu me sinto falsa e desconfortável sem ele.
Nomes continuam vindo. Calculo que mais de sessenta pessoas passam pela porta, incluindo “Stevens, Zoe”, que berra antes de entrar. Eu estremeço quando ela grita “Taylor, Cassandra”.
Enquanto pego a bolsa, ela diz:
— É isso para esse grupo. Todos os outros aguardem aqui, vocês serão chamados por outros instrutores.
Ela me segue pela porta e a fecha atrás de si.
Estamos numa grande sala negra. Um espaço multiuso.
Na parede mais distante há uma longa arquibancada reversível. A maior parte do grupo está sentada lá, conversando baixinho.
A contagem final é oitenta e oito. Sessenta meninas e vinte e oito meninos.
Nenhum deles parece tão nervoso quanto eu me sinto.
Eu me acomodo, perdida num mar de garotos da cidade mais experientes.
Minhas pernas começam a tremer de novo.
A instrutora está à nossa frente.
— Meu nome é Erika Eden, e sou diretora do departamento de interpretação.
Nesta manhã vamos trabalhar um pouco com personagens e improvisação. No final de cada cena, comunico a vocês quem vai ficar. Sei o que estou buscando, se vocês não tiverem isso, vão embora. Não estou pegando pesado, é apenas como as coisas são. Não preciso dizer que a Academia Grove aceita apenas os trinta melhores candidatos dos dois mil que vão fazer os testes nos próximos dias,então dêem o melhor de si. Não estou interessada em teatralidade banal emoção falsa. Me dêem algo que valha a pena ou vão embora.
Meu medo de falhar murmura que eu deveria ir embora. Mas não posso.
Preciso disso.
Passamos a próxima meia hora fazendo exercícios focados. Todo mundo está tentando desesperadamente não parecer desesperado. Algumas pessoas são mais bem-sucedidas do que outras.
Zoe é barulhenta e confiante, como se sua aprovação já estivesse certa.
Provavelmente está. Ethan Holt é intenso. De forma incrível. Suas interações disparam uma energia contida, ele é uma usina nuclear usada para acender uma única lâmpada.
Tento manter tudo real e natural, e na maior parte das vezes eu consigo. Estou indo bem.
Após cada cena, pessoas são cortadas. Algumas levam numa boa e outras despencam e se inflamam. É como uma zona de guerra.
O grupo diminui rapidamente. Erika é rápida e eficiente, e toda vez que ela chega perto de mim acho que vou embora. De alguma forma, consigo sobreviver.
Quando paramos para o almoço, estamos todos em silêncio. Até Zoe. Nos sentamos em círculos, as cabeças cambaleando com os monólogos. Tentamos ignorar que a maior parte de nós não vai chegar às chamadas amanhã. Algumas vezes meu rosto queima, e levanto o olhar para ver que Holt, Ethan está olhando
para mim. Ele imediatamente desvia o olhar e fecha a cara. Eu me pergunto porque ele parece bravo.
De volta à sala, somos organizados em pares. Estou com um garoto chamado Jordan, que tem espinha e língua presa.
Cada dupla recebe um enredo, e o restante de nós observa. É como um esporte sangrento. Todos esperamos que os outros se ferrem, para que tenhamos
mais chance.
Zoe e Holt são colocados juntos. Interpretam estranhos numa estação de trem. Conversam e flertam enquanto Zoe balança o cabelo. Obviamente ela tem
talento para agir como uma puta desesperada.
Jordan e eu interpretamos irmãos. Não tenho irmãos, então é meio legal. Nós implicamos um com o outro e rimos, e tenho de admitir que somos bem bons.
Erika nos elogia, e o resto do grupo aplaude sem muito ânimo.
No final da rodada, pessoas são cortadas e lágrimas rolam. Suspiro, aliviada, quando percebo que restam apenas trinta de nós. As chances estão melhorando.
Os parceiros são trocados. Fico com Holt, Ethan. Ele não parece feliz com isso. Senta-se ao meu lado com a mandíbula bem travada. Acho que nunca notei
a mandíbula de um menino antes, mas a dele é impressionante.
Ele se vira e me pega olhando fixamente para ele, e sua expressão mistura cenho franzido com vou-te-matar-e-arrancar-toda-sua-pele.
Eu me viro. Vamos ser uma porcaria como parceiros.
Erika caminha na frente do grupo.
— Para esta última sessão, todo mundo vai receber a mesma tarefa. Seu enredo é “imagem no espelho”.
Soa fácil.
— Não vai ser fácil.
Droga.
— Esse exercício se baseia em confiança, abertura e conexão com a outra pessoa. Nada de inibições. Sem artifícios. Apenas energia pura, bruta. Se não
relaxarem nisso, vão falhar, e se não se conectarem com a outra pessoa, vou saber. Nenhum de vocês lidera nem segue. Precisam captar o sentimento um do
outro, entenderam?
Nós todos assentimos.
Não tenho a mínima ideia do que ela está falando. Holt esfrega os olhos e faz um som baixo de grunhido. Imagino que ele também não saiba.
— Certo, vamos nessa.
A primeira dupla se levanta. É Zoe e Jordan. Levam alguns minutos para planejar, então assumem suas posições e começam a se mover. É óbvio que Zoe está liderando e Jordan está seguindo. São só mãos e nada mais. Num ponto,Jordan ri. Erika anota em sua prancheta. Imagino que ele tenha estragado a chance. Eu sorrio. Assim como Holt.
Mais um que cai.
Os outros grupos prosseguem, e Erika os circunda como um gavião,examinando cada movimento. Está decidindo os cortes finais. A maioria das
pessoas está desmoronando com a pressão. Estou nervosa além da conta.
Finalmente é nossa vez, e ficamos na frente do grupo. Holt está balançando as pernas. Suas mãos estão dentro dos bolsos, os ombros, caídos. Não me inspira
confiança. Meu estômago se revira como um ninho de víboras, e eu realmente gostaria de fazer xixi ou vomitar. Por não poder fazer nenhum dos dois, eu alterno o peso do corpo de um pé para o outro enquanto imploro que minha bexiga fique quietinha.
Erika nos estuda por alguns momentos.
Percebo que Holt e eu paramos de respirar.
— Tudo bem, vocês dois. Última chance de me impressionar.
Holt me olha e vejo desespero refletido nele. Ele quer isso. Talvez tanto quanto eu. Erika se inclina para mim e abaixa a voz.
— Ele se mexe, você se mexe, srta. Taylor. Entendeu? Respire o ar dele. Encontre uma conexão. — Ela lança um olhar para Holt. — Se não encontrarem o equilíbrio certo, isso não vai funcionar. Você tem de deixá-la entrar, Ethan. Não pense, apenas faça. Três strikes e está fora, lembra?Ele assente e engole em seco.
— Vocês têm três minutos para se preparar. — Ela sai, e Holt e eu nos mudamos para os fundos da sala. Estamos mais perto um do outro e ele tem um cheiro bom. Não que eu devesse notar quão bom é o cheiro dele, mas meu
cérebro está procurando uma distração para o nervosismo, e é o cheiro bom dele.
— Olha — ele diz quando se aproxima. — Preciso disso, tá? Não estraga tudo.
Eu coro de raiva.
— O quê? Você tem tanta chance de estragar tudo quanto eu. E o que Erika quis dizer com “três strikes e está fora”?
Ele se inclina para a frente, mas não olha para mim.
— É o terceiro ano que faço o teste. Se não entrar desta vez, é o fim. Eles não vão me deixar tentar de novo. Então meu pai vai dizer um belo “eu avisei” e vai querer que eu vá para a faculdade de medicina. Trabalhei duro para isso. Preciso disso, tá?
Estou confusa. Eu o observei o dia inteiro. Essa gente é cega?
— Por que não entrou antes? Você é bom mesmo. — De uma forma perturbadoramente intensa.
A expressão dele suaviza por um momento.
— Acho difícil... me misturar... com os outros atores. Aparentemente, Erika acredita que esse é um atributo importante que seus atores devem ter.
— Não pareceu que você tivesse problemas com Zoe.
Ele bufa.
— Não havia conexão lá. Não senti nada, como de costume. Erika consegue ver.
Olho para a moça de cabelo escuro que está nos estudando.
— Ela já testou você antes?
Ele assente.
— Todos os anos. Ela quer me oferecer um lugar, mas não vai me deixar passar facilmente. Se não conseguir provar a ela que posso fazer este exercício em particular, em que fui uma droga todas as vezes, acabou.
— Um minuto! — Erika grita.
Meu coração fica a mil.
— Escuta, Holt, faça o que for necessário para se “conectar” comigo, tá?
Porque se eu não conseguir isso, vou ter de voltar aos meus pais hiperprotetores,e, sinceramente, não aguento mais essa punheta. Então você não é o único com
algo a perder aqui. Ele franze a testa.
— Você... você acabou de dizer “punheta”?
Sinto uma vergonha feroz tomar minha garganta. Ele está rindo de mim, só porque me recuso a punir meus impulsos como cada punheteiro deste lugar.
— Cala a boca.
— O sorrisinho dele alcançou proporções enfurecedoras.
— Sério? “Punheta”?
— Para com isso! Está desperdiçando tempo!
Ele para de rir e suspira. Pelo menos agora parece mais relaxado. Acho que porque toda a ansiedade dele se transferiu para mim.
— Olha, Taylor...
— Meu nome é Cassie.
— Que seja. Só relaxa, tá? A gente consegue. Olha nos meus olhos e... Jesus,sei lá... me faz sentir alguma coisa. Qualquer coisa. Não perca a concentração.
Foi o que fodeu com todo mundo até agora. Apenas foque em mim, e eu vou focar em você. Tá?
— Ótimo.
— E não diga mais “punheta”, porque vai me dar vontade de rir. Você sabe que é meio pornográfico, né?
Não, eu não sabia que era meio pornográfico. Pareço uma pervertida que curte pornografia?
Solto o ar e tento focar. Meus pensamentos estão um caos. Preciso me acalmar.
— Ei — ele chama enquanto toca meu braço. Não ajuda nada na
concentração. — A gente consegue. Olha para mim.
Levanto os olhos. Seus cílios são ridículos. Conforme ele me olha, algo revira dentro do meu estômago.
Ele deve ter sentido a mesma coisa, porque está boquiaberto e puxa o ar bruscamente.
— Puta merda. — Ele pisca, mas não afasta o olhar. A energia fluindo entrenós é intensa demais. Fecho meus olhos e solto o ar.
— Taylor?
— Cassie.
— Cassie — ele sussurra, sua voz suave e cheia de desespero. — Concentre-se, por favor. Não vou conseguir sem você.
Engulo em seco e faço que sim com a cabeça. Então Erika grita com a gente,e caminhamos ao centro do salão. Viramos um para o outro, apenas a um passo de distância.
Ele é muito mais alto do que eu, então olho para seu peito, que sobe e desce conforme Holt tenta se acalmar. — Pronta? — ele sussurra.
Quero gritar “Não, Deus, por favor, vou estragar tudo!”, mas, em vez disso,respondo:
— É claro. — Como se isso não fosse vida ou morte, ou pelo menos algo muito importante.
Respiro fundo antes de levantar o olhar. Sua expressão está menos
desesperada agora, e parece que eu o estou vendo... realmente o enxergando...pela primeira vez. Sinto a energia. É como uma onda de calor ao redor dele.
Ficamos lá por alguns segundos, apenas respirando, e, conforme trocamos olhares, o ar entre nós se solidifica. Conectando-nos como duas partes da mesma
pessoa.
Ele levanta sua mão e eu sigo, enquanto temos milhares de pequenas cordas entre nossos braços, nos alinhando. Acompanho sua velocidade com precisão,me movendo ao mesmo tempo que ele se move, respirando ao mesmo tempo
que ele respira.
Mudamos de posição novamente, os corpos estão perfeitamente alinhados.
Parece tão natural. Há muito tempo não sentia nada tão natural. Talvez nunca tenha sentido.
Nós nos aproximamos. Ele se inclina para a frente e eu me inclino para trás.
Eu viro de lado e ele segue. As cordas invisíveis entre nós. Os movimentos ficam mais rápidos, mas cada um é perfeito e preciso. Coreografia complexa que nunca aprendemos, mas nossos músculos de alguma maneira se lembram.
É emocionante.
Estamos em êxtase. Aquele estado mágico em que os atores às vezes chegam, quando tudo está fluindo com entrega. Coração, mente, corpo. Já senti
isso antes, mas nunca com outra pessoa.
Eu me sinto incrível.
Abrimos sorrisos. Holt fica bem bonito quando sorri.
Nossos braços estão sobre nossas cabeças. E nós lentamente descemos com eles, nossas palmas se juntam. Suas mãos são grandes e quentes, e minha pele coça onde nos tocamos. Nós nos encostamos um no outro com os nossos corpos pesando para a frente e nossas palmas pressionando mais firmemente. Então,estou encarando seus olhos. Estamos os dois sem respirar, e não sei por quê.
Num segundo, a expressão de Holt se enche de pânico, e ele fica tenso. Então pisca e baixa o olhar. E, de repente, é como se toda a leveza saísse do ar; nossa
energia cai no chão e se esvai. As cordas que estavam nos mantendo juntos se desintegram.
Holt se afasta e solta o ar antes de olhar para Erika.
— Já deu? Ninguém mais ficou tanto tempo. Já deu, né?Erika inclina a cabeça e o estuda. A postura dele é tensa e desafiadora.
Abaixo as mãos. Estão frias agora. Eu as aperto nas laterais enquanto meu coração bate rápido e irregular.
— Já deu ou não? — Holt questiona, e tudo de bom que senti por ele desapareceu. Ele é tão mal-educado.
— Sim, sr. Holt — Erika responde calmamente, olhando para mim. — Você e a srta. Taylor completaram o exercício. Muito bem. Vocês dois têm uma química interessante aí, não têm?
Ele engole em seco e fixa o olhar. Ela dá a ele um sorriso caloroso.
— Pode se sentar. Todo mundo, aplausos para eles.
O grupo todo irrompe em aplausos. Escuto murmúrios de surpresa por sermos tão bons.
Ninguém está mais surpreso do que eu.
Holt segue de volta à arquibancada e se senta. Zoe salta ao lado dele e toca seu bíceps, dizendo que ele foi incrível. Ela seria mais sutil se rasgasse a camiseta e implorasse para que ele a apalpasse. Ele a ignora e apoia os cotovelos nos
joelhos.
O restante da tarde passa num piscar de olhos. Pessoas são cortadas, duplas são trocadas ao longo das diferentes interpretações. No final do dia, Erika nos dispensa, e ficamos do lado de fora esperando que ela coloque a lista de quem vai retornar. Estamos no limite. Nenhum de nós sabe se fizemos o suficiente para seguir para a próxima etapa. Até Zoe está insegura.
Ela morde o interior da bochecha e anda de um lado para o outro.
Eu mordisco minhas cutículas e repito “Ai, por favor, por favor, por favor”,seguidamente, como se implorasse para que o universo me ajudasse agora.
Holt está sentado no final do corredor, as costas estão contra a parede e as pernas, puxadas ao peito. Ele parece estar com dor.
Apesar do comportamento de hoje, sinto pena dele. Todo mundo está nervoso, mas ele parece realmente doente.
Vou até ele, que está com a cabeça apoiada na parede e os olhos fechados.
Quando toco seus ombros, ele dá um salto como se eu tivesse lhe dado um choque.
— Que porra? — Ele me olha feio, mas é difícil achá-lo intimidador quando ele está tão verde que poderia arrumar um emprego com os Muppets.
— Tudo bem com você?
Ele abaixa a cabeça e suspira.
— Estou bem. Vá embora.
Não sei nem por que me importei.
— Você é um panaca, sabia?
— Sei bem.
— Só para me certificar. Começo a sair, mas ele se estica, sem me tocar, e me faz parar.
— Taylor, olha... eu...
— Meu nome é Cassie.
— Cassie.
A forma como ele diz meu nome é... Bem, provoca coisas estranhas em mim. Pode ser melhor se voltar a me chamar de Taylor.
Ele aponta o chão para eu me sentar, e me sento.
— A coisa é que... Não vamos ser amigos, então imaginei que não tinha sentido gastar energia um com o outro, certo?
Pisco algumas vezes.
— Hum, tá.
— É isso? Tá. — Ele parece decepcionado, mas eu não sei por quê.
— Bem, eu nunca tive essa conversa de “Você e Eu Não Vamos Ser Amigos antes, então não estou certa do protocolo. Eu te agradeço por mostrar o
óbvio ou...?Ele esfrega a mão sobre o rosto e grunhe.
— O que é? — pergunto. — Não sei o que você espera que eu diga. Não estava planejando ser sua amiga.
— Isso é bom. — Ele ainda esfrega o rosto.
Eu inspiro e tento não perder a calma.
— Qual é o seu problema? Eu basicamente salvei sua pele aqui hoje, e você me trata feito lixo?
— Sim. — Seus ombros estão tensos e elevados. — Porque você é tão...
— O quê? Chata? Irritante?
— Bipolar.
Isso me faz parar na hora.
— Ah... eu... hã?
Ele suspira e balança a cabeça.
— Eu te vi mais cedo, fazendo o joguinho da popularidade. Dando aos moleques descolados o que eles queriam. O que é ridículo porque a maioria deles é de surtados desagradáveis que são tão verdadeiros como uma nota de três dólares. Mas, comigo? Você é toda irritadinha, impaciente e honesta como um
trator. O que foi, você não gosta de mim o suficiente para fingir?
Não percebi isso até ele dizer, mas eu nunca, e digo nunca mesmo, falei com alguém da forma como falo com ele. Nunca deixei alguém saber que estava
irritada ou impaciente. Não é assim que eu sou. Eu me dou bem com as pessoas.
Fiz isso a vida toda. Se alguém não gosta de mim, eu faço gostar. Mas, com ele,tudo é diferente.
— Bom, e quanto a você? Qual é sua história?
— Sou uma pessoa fácil de entender — ele diz, com uma risada amarga. —
Sou um merda. — Disso eu sei.
— Não, não sabe.
— Hum, sim, sei. Você passou a tarde toda me tratando como se eu fosse te infectar com lepra. Então eu sei o que você é.
Ele assente.
— Ótimo. Então vai saber ficar longe de mim.
— Tenho certeza de que não vou ter muita escolha quanto a isso, porque depois que Erika colocar a lista de retorno, nós nunca mais vamos nos ver.
Problema resolvido.
Ele fecha a cara.
— Por que acha isso?
— Porque você provavelmente vai ser chamado, e eu, não, então... é isso.
Ele baixa o olhar e remexe em seus cadarços.
— Não esteja tão certa. Você foi bem hoje. Mais do que bem.
Leva um momento para eu perceber que ele me fez um elogio.
— Uau... é... valeu. Você também foi bem.
Ele levanta o olhar e dá um quase sorriso.
— Fui?
Eu reviro os olhos.
— Ai, faça-me o favor. Você sabe que foi incrível.
— É, eu fui — ele concorda.
— Que humilde.
— E bonito. Deve ser um saco mesmo não ser eu.
Balanço a cabeça e digo:
— Então você está tentando entrar aqui há três anos. O que tem feito nesse meio-tempo?
Ele esfrega as mãos.
— Basicamente trabalhei com construção para uma empresa em Hoboken.
Eles constroem cenários para peças da Broadway. Achei que, se eu não pudesse estar no palco, eu trabalharia nos bastidores.
— Por isso suas mãos são ásperas?
Ele franze a testa.
— Durante o exercício de espelho, quando nos tocamos, suas mãos tinham calos.
Ele olha para as mãos.
— Prefiro pensar que elas são reforçadas. Carregar toneladas de pedaços de cenário não é um trabalho delicado. É uma malhação infernal.
— Então é por isso que você tem todo esse... — eu aponto para seus ombros e
braços — ... isso?
Ele sorri e balança a cabeça.
— É. Por isso que tenho tudo isso. E dinheiro o suficiente para pagar por pelo menos dois anos se entrar aqui.
— Quando você entrar aqui — eu o corrijo.
Ele me encara por um segundo, como se minha fé nele fosse
incompreensível.
— Se você diz, Taylor.
Eu desisto de pedir a ele que use meu primeiro nome. Provavelmente é
melhor mesmo que fiquemos na base do último nome, considerando que não
vamos ser amigos nem nada assim.
Só que meio que parece que já somos.
Ficamos em silêncio lá por um tempo. Então a porta se abre e todo mundo salta e fica em pé quando Erika surge com um pedaço de papel.
Todos ficamos em silêncio com a expectativa ao nosso redor.
— Para os que estão nesta lista, parabéns. Vocês voltarão amanhã para a segunda etapa de testes. Aqueles que não estão, temo que não tenham tido sucesso. Podem se reinscrever ano que vem. Obrigada pela participação.
Ela se vira e afixa o papel atrás da porta antes de desaparecer lá dentro.
Há um grande movimento de corpos quando todos tentam ver a lista. Eu abro caminho, meu coração acelerado, preparado para a decepção.
Quando finalmente chego à frente, seguro a respiração.
Há apenas três nomes.
Ethan Holt.
Zoe Stevens.
E... Cassandra Taylor.
O restante do grupo foi cortado.
Estou em choque.
Eu consegui.
Vai, punheta!
Holt fica atrás de mim e solta o ar. Ele suspira aliviado.
— Porra, valeu.
Eu me viro quando ele abaixa a cabeça e solta o ar novamente. Parece um prisioneiro do corredor da morte que recebeu o perdão.
— Ah, que fofo que está tão feliz por mim. Você tinha realmente alguma dúvida?
— Sobre você? — ele pergunta. — Nenhuma. Parabéns.
— Parabéns para você também. Acho que o mundo médico está salvo de sua cintilante postura ao lado dos leitos, pelo menos por mais um dia.
— Acho que sim — ele concorda, e, quando olha para mim, a boca do meu estômago se aperta e revira. Sinto que tenho de dizer algo, mas meu cérebro está estranho e enevoado, então apenas permaneço lá. Ele também não fala. Apenas olha. Seu rosto está fascinante de uma forma irritantemente bonita.
— Bem... — começo —, acho que te vejo amanhã. Ele assente.
— É. Claro. Até, Taylor.
Ele pega a mochila e sai. Eu faço o mesmo. Mas sei que vamos nos ver de manhã. Estou ansiosa e com medo ao mesmo tempo.
Nunca me senti assim em relação a um garoto.
Estou bem certa de que coisa boa não é.