Lar Doce Lar

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"Corre Dani", era só o que eu conseguia dizer. O céu  rubro negro era quase tao assustador quanto os gritos e vozes que chamavam pelo meu nome. Daniel corria um pouco atrás de mim eu podia ver o desespero em seus olhos grandes e castanhos, meu Deus, meus pés pareciam tão pesados. "Não! Eu não posso parar agora! Aquelas mãos vão me pegar!!", olhei pras minhas próprias mãos e elas estavam com sangue, olhava ao meu redor procurando por Daniel e o via tão longe parado olhando pra mim. Quando voltei meus olhos pra frente novamente vi em uma das minhas mãos um machado ensanguentado e no chão perto dos meus pés estava a cabeça DELE sem o corpo, deixei o machado cair no chão e ele abriu os olhos. Oh sim, aqueles olhos eram do Otávio.
Acordei ensopada de suor, sem entender muito bem o que havia acontecido. Meu pijaminha grudado em mim como uma segunda pele,podia ouvir mamãe e Otávio discutindo na cozinha. Me levantei coloquei o moletom mais feio que tinha e fui até o banheiro, torcendo pra que eu fosse invisível. Ótimo, cheguei no banheiro sem que ninguém me visse,tranquei a porta sem fazer barulho e joguei água no rosto "cadê o Dani quando preciso dele?", meu padrasto não parava de gritar, que voz irritante, não ia acabar nunca? Mamãe só sabia chorar e pedir perdão, só não entendia porquê. "Perdão por ter uma filha? Perdão por me amar o suficiente para não permitir que ele me matasse? Perdão pelo que?"
No espelho eu via um rosto, mas não era o meu, eu não era aquilo que o espelho refletia, me sentia completamente podre por dentro, virei meu olhar para dentro de mim e tudo o que eu via era negridão, um breu sem fim. Eu simplesmente não tinha conserto, estava quebrada a muito tempo, mamãe mesmo me disse várias vezes que eu era apenas um acidente, não era pra acontecer.
Pude sentir Daniel atrás de mim :
-Foi um pesadelo e tanto hein -  disse ele sentado sobre a tampa do vaso.
-Pois é, estou com medo de sair do banheiro, Otávio está na cozinha. Gritando como sempre e acho que ele bebeu.
- Que tipo de animal bebe tanto antes das 9 da manhã? Vamos Maria, não pode ficar dentro do banheiro pra sempre, uma hora terá de sair.
Pá pá pá!!!!
Era Otávio esmurrando a porta quase a derrubando, procurei Daniel mas ele já tinha sumido, bufei, tentei acalmar os ânimos.
-Já estou saindo.
-Mas que caralho putinha, que tipo de gente fica tanto tempo dentro de um banheiro??
-Não sei, mas com certeza não é o mesmo tipo que bebe tanto antes das 9 da manhã!
-O que sua biscate? O que você disse??
Droga, sempre me arrependo me abrir minha boca, ele ia me matar. Supliquei que mamãe o impedisse, mas sabia que não aconteceria, precisava sair daquele banheiro "vamos, eu estou com você" Daniel dizia em meus pensamentos. Abri a porta antes que eu conseguisse pensar e ele acertou um murro bem no meio da minha cabeça, e isso doeu muito, pensei que fosse desmaiar. Mas ele segurou em meu  braço e me jogou contra a parede, bati a cabeça de novo. Eu podia sentir cada artéria do meu corpo pulsando. Ele chegou com o rosto bem perto do meu e disse, cuspindo:
-Quando o homem fala, putinhas como você calam a boca. Entendeu? ENTENDEU???
-Sim - eu tentei dizer mais alguma coisa, mas não consegui, o hálito de pinga dele estava revirando meu estômago.
Ele virou as costas e bateu a porta do banheiro e eu me vi livre dele. Por enquanto.
Olhei pra mamãe, ela apenas de cabeça baixa encostada na pia, nem sequer olhava pra mim "olhe pra mim mamãe, só me olhe. Por favor". Não. Ela não olharia. Eu poderia morrer, ela simplesmente não perceberia minha ausência. Não faria diferença. Me levantei, fui até o meu quarto e fechei a porta, meus olhos imersos num oceano de lágrimas doloridas. Minha cabeça latejava, podia sentir que estava quente onde ele me bateu. Eu não suportava minha vida e tinha apenas 8 anos.
Sábado era o pior dia, pois não tinha aula,mamae trabalhava e eu ficava sozinha com ele.
"Tomara  que ele esteja bêbado o suficiente para dormir o dia inteiro." pensei enquanto tentava em vão secar minhas lágrimas insistentes, "ah, pode apostar que ele está.", era Dani agachado ao meu lado. Ele estava sorrindo pra mim, estaria perdida sem ele. Com toda a certeza era o meu melhor(e unico) amigo.
Ouvi a porta do banheiro sendo destrancada e cada osso meu congelou,meus olhos e os de Dani grudaram na porta. Apenas esperando pelo inevitável. Mas ele não entrou,foi para o outro quarto, provavelmente dormir.
Alguns minutos depois mamãe bateu na porta :
-Querida, eu estou indo trabalhar tá bom. As 5 estou de volta.
-Tudo bem mamãe.
Por dentro eu gritava "não mamãe, não me deixe." queria gritar pra ela,implorar que ficasse mas as palavras dele ecoavam na minha cabeça "um pio e voce e sua preciosa mamãe estão mortas".
-Va com Deus mamãe. Eu te amo.
-Eu também te amo querida, sua cabeça está melhor? Coloca gelo meu amor. Beijo.
Ela se foi. E eu apenas chorava enquanto via as costas dela se afastando do meu alcance.
Um buraco se abriu abaixo dos meus pés e me senti caindo, numa imensa e espessa solidão. Tudo por aqui era cinza e triste .
Acabei dormindo, enquanto mergulhava dentro do meu próprio desespero.

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⏰ Última atualização: Dec 17, 2017 ⏰

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