Por Marco Moretti
"O inferno são os outros"
Jean-Paul Sartre
O homem contemplou a silhueta da cidade recortada contra o céu enevoado com desdém
"Não, 'com desdém' não fica bom..."
com enfado
"Não, isso também não. Tem de ser algo mais... sei lá... enfático..."
com tédio
"É, pode ser... essa música que não para... mas, pensando melhor..."
com desprezo
"Hmm... é um pouco... um pouco... será que não dá pra esse sujeito ouvir isso mais baixo...?"
com irritação
"É meio assim que eu estou me sentindo agora... Irritado com esse barulho infernal que não para de martelar no ouvido..."
com ódio
"Assim está perfeito... não, não está. Está uma... uma... merda... o infeliz parece que faz de propósito... agora deu de aumentar o volume... ainda se fosse um Chico, um Jobim... mas isso lá é música...?"
com indig
"Ah, não dá mais pra suportar isso. Se esse cara queria me tirar do sério, conseguiu! Não consigo nem pensar direito com essa porra de batucada...!"
Tibúrcio abandonou na tela do computador as palavras do texto que estava escrevendo e marchou a passos firmes e determinados até o interfone. Ia dar um fim nessa situação de uma vez por todas.
- Ah, seu Tibúrcio, sabe como é – começou a se explicar Gilmar, o porteiro, o cérebro entorpecido de inatividade custando para arregimentar as frases - o morador do 66 sai pra trabalhar e deixa o filho sozinho a tarde toda. Aí, dá nisso...! É som alto sempre. Não é só o senhor que reclama, não. A dona Ivete, do 52, também...
- Sei, mas o que é que eu tenho a ver com isso? Eu não pago condomínio pra ter de aguentar alguém me infernizando com esse pancadão. Desculpa, Gilmar, mas alguém tem de tomar uma providência.
O porteiro se enrolou em desculpas e explicações muito mal ajambradas e terminou dizendo que ia ver o que podia fazer. Por um instante, pareceu que a reclamação do estressado escritor havia surtido efeito. A calma voltou a reinar no prédio, ao menos por ora. Ele podia retomar o seu ofício.
com profunda amargura
Não, isso também não se encaixava. Podia ouvir Flaubert sussurrando em seu ouvido direito, e ele talvez tivesse razão... Ah, ele que fosse para o inferno com aquela história de "mot juste" ! Tibúrcio simplesmente não conseguia encontrar a droga da palavra correta. Parecia que jamais atinaria com o termo apropriado. "Acho que não é bem esse o estado de espírito do... mas e essa agora? Que porcaria de gritaria...?"
Ele parou com os dedos suspensos sobre o teclado e, por um minuto, tentou controlar o batimento cardíaco que bombeava litros de sangue para a cabeça. Mas isso durou o espaço de tempo necessário para que o bando de crianças que corria atrás da bola e berrava no pátio em festiva desordem desatasse a discutir. E não fizeram isso de forma polida e contida, como se fossem senhoras de idade comendo bolo de nozes num bem comportado chá da tarde.
Já que as queixas e os rogos de nada serviam, e como ninguém parecia se importar com aquela balbúrdia a não ser ele, o homem mandou às favas a educação e o autocontrole e se precipitou para a janela. Com os olhos injetados de ira, as sobrancelhas ameaçadoramente arqueadas, os cabelos eriçados, uma carantonha amedrontadora, lançou uma expressão de fúria sobre o punhado de fedelhos que o azucrinava. Quando mandou que ficassem em silêncio (bem, não exatamente com essas palavras nem com a amabilidade que se esperaria de alguém com a sua índole comumente pacata), era a imagem acabada e pavorosa de Oro .

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Eles, os outros
Historia CortaO escritor Rafael Tibúrcio sempre teve uma relação complicada com o resto da humanidade. Agora, ele resolveu declarar guerra a todo o mundo. Mas esse é um conflito que ele terá de travar dentro das trincheiras de sua própria casa e os inimigos estão...