Capítulo Único

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Bom, eu preciso desabafar. Preciso contar isso a alguém. Mas bem, não sei como devo começar... Tudo bem, vai ser mais simples se eu apenas relatar, você não concorda? Ótimo!

Então, outra vez eu estava ali, sentado no mesmo sofá de couro desgastado pelo tempo, no fundo da boate, com visão privilegiada à pista de dança mal iluminada e ao balcão. A atmosfera daquele lugar era a mesma de sempre, talvez com um odor de cerveja mais acentuado.

O garçom trouxe outra garrafa de vinho, enquanto olhava para mim com a mesma cara entediada dos outros finais de semana. O agradeci com um movimento de cabeça e peguei a caixa de cigarros em cima da mesa. A música que tocava em uma altura consideravelmente agradável era a mesma que havia tocado quando jurei que nunca voltaria a me envolver com ela, que em hipótese alguma a perdoaria. Aquela era a nossa música.

Naquele momento eu senti o arrependimento se aflorar em cada mísera célula do meu corpo. Recordei das inúmeras barbaridades que gritei enquanto via o seu lindo sorriso zombeteiro sumir. Parecia tão recente, em uma madrugada tão singular, ambos deitados no meu velho sofá desconfortável enquanto ouvíamos e cantávamos "Bed in Roses" do Bon Jovi tocando no meu notebook quase descarregado. Lógico, antes de tudo acontecer.

Aqueles mesmos olhos incrivelmente azuis, que se arregalaram para evitar um incontrolável choro -enquanto vestia apenas uma velha camisa minha-, me encaravam do outro lado da localidade, acompanhados de um sorriso malicioso. Seus traços tão marcantes eram as mais frágeis testemunhas do que acontecera entre nós, e também a única coisa que me impedia de levantar de onde estava confortavelmente sentado e lhe pagar uma boa dose de Campari, sua bebida favorita.

É, eu sei que disse coisas imperdoáveis, mas em minha defesa gostaria de questionar: O que eu poderia ter feito? No calor do momento descobrir que na verdade eu não a conhecia, que ela não era nada do que eu havia imaginado; eu me senti traído, agi por impulso, como ainda sou tão acostumado a fazer.

Mesmo com a minha decepção, tinha total consciência da gravidade das coisas que gritei, talvez por isso eu simplesmente não conseguisse entender o motivo para que ela ainda estivesse sorrindo para mim, como se nada mais importasse além do nosso contato visual. Eu questionava sem parar "Qual o problema dela?" ou "Por que diabos ela me deixa assim?".

E então ela se levantou do alto banco de madeira, deixando o copo no balcão. Vagarosamente desfilou em minha direção, com um balanço teatral que só ela era dona, fazendo com que aquele bar mal ventilado fosse o pior convite para o inferno e seus pecados. 

Confesso, eu quis fugir, e só não o fiz pois algo me impedia, me asfixiava, embaralhava os meus sentidos. Tudo que eu conseguia sentir era a aproximação do seu inebriante perfume amadeirado, que sempre seria sua marca.

Outra vez as lembranças me atacavam. Ouvia os ecos das minhas falas, a via catando as suas coisas no chão da sala e saindo do meu apartamento.

Cada vez que ela dava um passo era como se toda a nossa discussão passasse na minha mente, como um filme. Cada movimento dela, era um arrepio diferente no meu corpo, uma vontade de mandá-la embora e puxar o seu braço para impedir que partisse.

Ela sentou cautelosamente no sofá à minha frente e balançou os cabelos castanhos claros em um gesto tão simples, ao mesmo tempo tão sedutor.

-Como anda você, Pedro Gabriel? - Perguntou ela, sorrindo de forma irônica. Meu coração parecia acelerar em câmera lenta, tão frágil e desnorteado, como uma velha obra de arte esquecida em algum museu abandonado, com tranqueiras que nunca seriam úteis a ninguém.

-Estou indo, Ana. E você, como vai? - Minha voz saiu cortante, e tenho quase certeza de ter reparado um brilho especial passando pelas suas magníficas íris azuis. Com delicadeza ela pegou um cigarro na caixa que eu havia deixado sobre a mesa de centro.

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⏰ Última atualização: Nov 27, 2016 ⏰

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