Capítulo 1 sem título

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  IEm um dia em que se nos propõem três Evangelhos, não é muito que preguemos sobre três temas.O primeiro Evangelho é da Dominga corrente, que canta hoje a Igreja universal. O segundo é doDiviníssimo Sacramento, pela devoção particular desta casa. O terceiro é o comum das Virgens, emmemória da gloriosa Virgem, mãe de tantas e tão santas, a Santa Madre Teresa de Jesus, cujasolenidade também concorre e se celebra aqui hoje.Começando pois pelo primeiro Evangelho — que, como mais universal e mais próprio deste dia, ébem que seja o que nos abra o caminho, e dê fundamento a tudo — diz nele e ensina em parábola odivino Mestre que o reino do céu é semelhante a um homem rei: Simile factum est regnum caelorumhomini regi (Mt. 22, 2). Não há duas coisas tão parecidas no mundo como o rei e o reino. Os reis sãoos espelhos a que se compõem os vassalos, e tais serão as ações do reino, quais forem as inclinaçõesdo rei (4). Não fala Cristo de qualquer reino, nem de qualquer rei, senão do reino do céu, e de um reihomem, porque se o rei for humano será o reino bem-aventurado, e se o rei for homem tão seguroestará o reino da terra como o do céu. Este rei, diz o Senhor que celebrou com grandes festas ocasamento do príncipe seu filho: Qui fecit nuptias filio suo, e nisto mostrou também que era reihomem, porque não descuidar da sucessão é reconhecer a mortalidade. Chegado o dia das bodas,mandou alguns criados que fossem chamar os convidados para o banquete, e diz o texto sagrado umacoisa que parece incrível, e é que eles não quiseram vir: Et nolebant venire (Mt 22,3). Se o rei oschamara para a guerra, escusa tinha a ingratidão na fraqueza e temor natural; mas para as bodas e parao banquete, não virem? Mais abaixo diz o mesmo Evangelho que mandou o rei os seus soldados, eforam; agora chamou os seus convidados, e não vieram. Eu lhes perdôo a descortesia pelo exemplo.Se os vassalos hão de faltar ao príncipe, antes seja na mesa que na campanha. Vendo o rei que osconvidados não queriam vir, mandou segundo recado, mas por outros criados, e não pelos mesmos:Misit alios servos (Ibid. 4). Não é nova razão de estado nos reis, para melhorar vontades, mudarministros. Mas a razão que aqui teve o rei, a meu ver, foi ainda mais fácil e mais achada. Mandou asegunda vez outros criados, porque é bem que se reparta o trabalho, e que vão todos. Se os segundosdescansaram enquanto foram os primeiros, bem é que descansem os primeiros, e que vão agora ossegundos. Assim que, mudar o rei os criados não é condenar os talentos: é repartir os trabalhos. Se osprimeiros tiveram ruim sucesso, não o tiveram melhor os segundos, que nem sempre com a mudançase consegue a melhoria. Os primeiros acharam más vontades: Nolebant venire; os segundosexperimentaram más obras: Occiderunt eos (5). Quer dizer que foram tão descomedidos alguns dosconvidados que não só afrontaram de palavra aos criados do rei, mas chegaram a lhes pôr as mãos etirar as vidas. Há maior ingratidão? Há maior descortesia? Há maior atrevimento de vassalos? Quefaria o rei neste caso? Diz o texto que mandou logo seus exércitos a executar um exemplar castigo;não só nas pessoas ou corpos dos rebeldes, senão na mesma cidade onde viviam, da qual não ficarammais que as cinzas, para memória ou esquecimento eterno de tal ousadia. Assim o fez o rei, e assim ohão de fazer os reis. Quem hoje se atreveu ao criado, amanhã se atreverá ao senhor. Ocupou os seusexércitos em arrasar as cidades próprias, quando parece que fora mais conveniente conquistar asalheias, porque não são tão danosas as hostilidades dos inimigos, como os atrevimentos nos vassalos.Melhor é ter menos cidades, e mais obedientes. Por isso lhe chamou o Evangelho cidade sua, deles, enão do rei: Civitatem illorum (Mt. 22, 7). Cidade que se atreve contra os ministros do rei, não é cidadedo rei, é cidade livre, e liberdades não as hão de sofrer as coroas. Se os criados ofenderam aosconvidados, queixem-se, que para isso tem o rei ouvidos; mas presumir violências e executá-las? Nãohá, nem é bem que haja em tal caso sofrimento nos reis, senão ira e fogo: Iratus est, et civitatemillorum succendit (6). Tão rigoroso se mostrou no exterior como rei, mas como homem, lá por dentrolhe ficou a dor e o sentimento: Perdidit homicidas illos (7). Notai os termos. A palavra perdidit querdizer matar e perder, porque de tal maneira castigava, que considerava o que perdia. Matar umhomicida é perder um homem: Perdidit homicidas illos. Executado assim, ou mandado executar, ocastigo, voltou-se o rei para os criados, e disse-lhes: Qui invitati erant, non fuerunt digni (Ibid. 2): Osque foram convidados não eram dignos. — Pois agora, Senhor? Não fora melhor conhecê-los antes deos convidar, que convidá-los antes de os conhecer? Eis aqui o maior mal e a maior consolação quetem o mundo. Serem os indignos os convidados é o maior mal; serem os beneméritos os excluídos é amaior consolação. Vendo o rei que não queriam vir os que convidara, tornou-se aos que tinhaenjeitado, e foram eles tão honrados, que todos vieram. Não introduziria Cristo na sua parábola estadiferença, se não fora o que nas suas eleições costumam experimentar os príncipes. Os seusescolhidos são aqueles que na ocasião não querem vir, e os seus enjeitados os que na ocasião vêmtodos. Chamaram os criados, diz o texto, todos os que acharam pelas ruas: Et impletae sunt nuptiaediscumbentum (Ibid. 10): E ficaram cheias as mesas. — Quantos andam desfavorecidos por essasruas, que haviam de encher muito bem o seu lugar, se os chamaram? Enfim o rei entrou na sala ondecomiam os convidados, e foi esta a melhor iguaria que veio à mesa: os olhos do rei. Viu um, entre osdemais, que não estava vestido de gala, e não só o mandou lançar fora, mas que, atado de pés e mãos,o metessem no cárcere mais escuro. Tão grande delito é não festejar o que os príncipes festejam. Mas,dado que este não fizesse o que devia, o que eu muito pondero é que de todos os convidados nenhumfoi bom, e de todos os excluídos só um foi mau. Antes de entrarem às bodas eram bons e maus:Congregaverunt omnes quos invenerunt, malos et bonos(8). E depois de entrarem, tirando um, todosforam bons, porque a melhor arte de fazer bons é admiti-los: o desprezo a ninguém melhorou; a honraa muitos.Esta é a parábola do Evangelho, tão parecida com a história dos nossos tempos, que por isso lheajuntei doutrina não imprópria deles. Vindo, porém, ao intento da nossa festa, ou festas, duas coisasacho menos neste Evangelho. Falados desposórios do príncipe e do banquete do rei, mas nem nosdesposórios nos diz quem foi a esposa, nem no banquete nos declara quais fossem as iguarias. Porisso tomei de socorro os outros dois Evangelhos. O Evangelho das Virgens nos diz que esposa é SantaTeresa: Exierunt obviam sponso et sponsae (9); o Evangelho do Sacramento nos declara que asiguarias são o Corpo e Sangue de Cristo: Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus (10).Suposto pois que a santa e o Santíssimo são as duas partes da nossa festa, para que com o mesmodiscurso satisfaçamos a ambas as obrigações, será hoje o meu assunto este: que os maiores favoresque Cristo fez a Santa Teresa são os mesmos que faz no Sacramento aos que dignamente comungam.Para igualar tamanhas graças é necessário muita graça. Ave Maria.

Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento, de Padre António Vieira.Onde histórias criam vida. Descubra agora