Olhei pela janela com a mente completamente vazia. Parecia que havia comido um daqueles espetinhos de camarão que se vendia na praia da tijuca e ficado com tanta disenteria que coloquei até o cérebro para fora. Sentia-me vazio por completo, para falar a verdade. Ouvi um movimento da minha esposa na cama, mas não importei-me de virar e olhá-la. Estava esperando um bom dia caloroso vindo de sua voz maravilhosa, quando um grito preencheu o ar.
—Mas que diabos é isto?! — ela gritou, levantando da cama e coçando os olhos.
— Que grito é esse, Ali? — eu suspirei, colocando a mão no peito.
— Pare de falar comigo! Estou ficando louca, por Deus! — Minha mulher andou pelo quarto, pegando a vassoura velha que havia jogado ao canto e apontando-a para mim.
— O quê está acontecendo? — eu perguntei ao aproximar-me dela.
— Não dê nem mais um passo! — ela bradou a vassoura. — Vá pra a luz!
— Luz, que luz? São duas horas da manhã, a única luz é a da casa da Doutora Georgia. Não vou para lá! Todos aqueles gatos...
— Por que continua falando? Era para você, deixe-me ver, estar morto e enterrado! — ela passou as mãos pelos cabelos lisos, nervosa. — Vá para a luz, Bruno!
— Pare de mandar-me para a luz! Não estou morto, ibecil! — Tentei bater na mesa. Quando digo tentei, quero dizer que não bati. Minha mão atravessou-a e nem um vento gélido senti. — Meu Deus, estou morto mesmo!
— Oh, agora tenho o fantasma do meu marido acordando-me. — ela resmungou, sentando-se na cama com uma distância segura de mim.
— Não me chame de fantasma!— Mas você é!
— Isso ofende! — Eu contraí os lábios. — Por que não estou, sei lá, no céu? Por que estou com você neste quarto?
— Não sei. Eu apenas estava sonhando com você e...
— Estavas sonhando comigo? — Sorri.
— Era tão bom. — Ela sorriu também — Antes de dormir, peço todas as noites para sonhar com você. Ligo para seu celular só para ouvir seu último áudio do whatsapp.
— Eu estava apenas rindo, falando o quanto você é mão de vaca. — Tentei sentar na cama, porém limitei-me a ficar em pé na sua frente.
Ela olhou para mim tão profundamente que por um segundo senti algo. Algo bem profundo, que completou as semanas de vazio inconstante. Algo que me fez ter vontade de gritar, sorrir, plantar bananeiras e dançar usando meu calção dos Menudos novamente, tudo de uma vez só. Era como se eu estivesse vivo.
Ou parcialmente vivo, como preferir.
— Eu o amava tanto. — Ela tentou tocar meu rosto e eu nada senti. Uma lágrima brotou dos seus olhos.
— Eu amo você. Vale o amor quando se não é alguém? — Eu suspirei. — Nem ao menos sinto seu toque.
— Não sou a pessoa mais indicada para responder algo coerente. Estou conversando com um fantasma. — Ela coçou a cabeça novamente, daquele jeito somente dela.
E o vazio novamente voltara a ser minha principal sensação. Sentia como se a estivesse perdendo. Pequenos pedacinhos parecidos com neve soltavam-se de minha pele e voavam pela janela. Ela comprimiu os olhos, como se estivesse lutando contra o sono.
— É tão difícil dizer adeus. — eu sorri sem mostrar os lábios. — eu quero que você tenha uma boa vida. Ria, cante, dance. Pode ficar com alguém que te faça feliz também. Menos o André da contabilidade — ela riu. — eu quero que você cumpra todos os seus sonhos, meu amor.
— Não quero que vá, Bruno. Isso é tão injusto.— Ela falou manhosa, as lágrimas traçando um rio nas suas bochechas vermelhas. Mais pedacinhos de mim ao vento.
— Tenho que ir. — Como queria poder chorar! Como queria poder sentir tudo que ela sentia naquele momento! — Não teria sentido ficar, estou bem morto e não serviria de nada para você. Eu vou deixar você ser feliz com alguém que possa pelo menos sentir.
Queria falar que estaria com ela para sempre.
Queria falar que a amava. Queria apenas... falar.
— Bons sonhos, Ali. — Sussurrei. E repeti várias vezes até esvair-me por completo, dançando ao vento como folhas secas no outono.

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Vale o amor quando se não é alguém? (OVO FRITO - EXTRA)
Short Story(Rio de Janeiro, 2015) "Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e...