06h06

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Casualidade.

Subi no ônibus sonolento por causa do cansaço da rotina. Sentei, soltei o ar em alívio e olhei para o desanoitecer que coloria o céu, antes escuro, em tons pastéis mesclados em rosa, lilás, laranja e azul. Nunca havia visto o céu daquela maneira, colorido, diferente, alegre. O monocromático fazia-se presente de maneira constante na minha vida. Ou isso, ou aquilo. Meio termo nunca fora uma concepção.

Tentava a todo custo adormecer, mas o sono era interrompido pelo barulho do despertar da humanidade e do balanço irritante do ônibus que me causava dor de cabeça aguda. Entediante, irritante, martírio. Esvaia-se de mim toda a vontade de materializar minha existência naquela cidade caótica; era um dia bonito, portanto um dia ruim.

Um cenário desolador me chamou atenção. O ônibus parou diante do trânsito em um viaduto, pude observar do alto a destruição que cercava os trilhos do lugar onde costumava passar o trem lotado e caindo aos pedaços: estruturas em ruínas, sucata, lixo, pedaços de tijolos e pisos, pedregulhos espalhados e uma figura aparentemente feminina sentada em frente aos trilhos, envolvida em uma manta fina e branca, quase transparente. Sua pele era exageradamente pálida, o cabelo negro na altura dos lóbulos das orelhas, olhos gigantes e arredondados tão negros quanto o cabelo.

O relógio velho em meu pulso marcava 06h06, voltei meu olhar para a garota e ela permanecia imóvel diante daquele lugar e daquele estado, os olhos fixos no nada. Eu quis saber o que ela pensava e o porquê de estar ali. A curiosidade dominou minha alma, meus olhos a acompanhavam quando, na verdade, era eu quem se movia.

Alguém gritou alguma coisa.

As buzinas soaram, desviei meu olhar por alguns segundos e ao tentar recobrar a imagem da qual me desvencilhei, ela havia sumido. Não era possível que minhas poucas horas de sono tenham sido o suficiente para perturbar meu senso de realidade. A procurei por toda aquela zona de desolação e sua partida não havia deixado rastros, tampouco sentido.

- Tudo bem, Clark. Só me traga mais um café. - minha voz saiu como um bocejo. Não desgrudei os olhos do computador quando a secretária, alguma coisa Clark, veio novamente reclamar dos erros normativos de meu relatório semanal. Eu odiava aquele emprego mais que odiava a minha vida. Clark - e odiava aquele sobrenome em pleno território brasileiro - trouxe meu café, exigiu mais atenção de mim, seu revisor, e saiu tentando equilibrar-se em cima dos sapatos de saltos enormes.

Eu era aquela rotina desgastada e estressante. Uma vida vivida em função da sobrevivência, o trabalho trabalhado para pagar os impostos altos e as contas caras. Conversas limitadas a casualidades obrigatórias do dia a dia e amores idealizados apenas na Literatura.

- Samir, você está no planeta Terra hoje? - Clark voltou a me questionar, provavelmente por causa do meu olhar fixo no nada.

- Você poderia me deixar trabalhar em paz?

- Você está trabalhando? Às vezes duvido da sua formação em Letras, ao menos consegue acentuar uma proparoxítona!

- Eu também duvido. - suspirei - Escute, sou estou tendo uma fase ruim. Péssima, na verdade.

- Ou você muda ou a sua carteira de trabalho passará por uma fase ruim. - Ela saiu e o som que seus saltos provocaram ao se chocarem no chão foi ensurdecedor. Dei um longo gole no café morno e decidi fazer jus ao emprego que eu tinha. Ou me concentrava ou as coisas ficariam ainda mais difíceis. Uma constante batalha em que, na verdade, o "ou" não me dava muito poder de escolha.

No final do expediente eu era outro. Me rastejava até o ponto do ônibus sem prestar atenção no que acontecia ao meu redor. Obedeci a rotina e quando me dei conta da realidade, já estava no viaduto onde dele avistei a garota misteriosa. Não havia ninguém naquele vão ferroviário. Meu celular vibrou dentro do bolso da mochila e aquilo me surpreendeu; não lembrava de ninguém que pudesse querer falar comigo a não ser para dar alguma notícia ruim por desencargo de consciência.

A Garota das 06h06Onde histórias criam vida. Descubra agora