capítulo único

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A pior parte de ter uma alucinação é o sentimento de desespero que só você sente. Enquanto o mundo parece girar exatamente como deveria, em você algo está desmoronando sem volta, em seus olhos o medo do que vê. A confusão em ver todos seguindo a vida enquanto a desgraça está bem ali, em frente aos seus olhos, pronta pra ser vista por quem quiser. Mas ninguém quer, porque não é real e as pessoas não estão interessadas em histórias inventadas por mentes imaginativas, a menos que seja algo relacionado ao mundo de Harry Potter, porque todos estão sempre prontos para viajar ao mundo de J.K.

A sua assombrosa alucinação continua se alimentando da sua impotência, enquanto os olhos do mundo estão mais preocupados sobre o próximo filme adaptado das obras de Stephen King, seu terror não parece suficiente pra que vejam. Você vai se afogando na ilusão que você pode jurar ser real, mas eu disse, ninguém se importa, ninguém vê, ninguém tenta entender.

Ainda posso dizer que tão ruim quanto estar alucinando é o momento após a alucinação. Quando os fantasmas se dissipam em frente aos seus olhos e sobra apenas os questionamentos sobre sua sanidade. Logo você, que sempre se julgou tão consciente da realidade, parece se deixar levar pelos braços da loucura sem saber o que é verídico e o que é inventado. Todas as suas certezas se quebram em minutos, todas as suas respostas se dissolvem em um copo de plástico cheio de água gelada na mão da psiquiatra. E todo o branco da clínica faz sua cabeça doer de um jeito que parece infinito. O silêncio físico só é interrompido pelos soluços infantis que lhe escapam, em sua mente tudo gira e faz barulho. Você quer correr com os fones no último volume, mas tem medo do que tem além da porta. Mesmo que não tivesse, você não pode sair da sala, porque pessoas que alucinam não são responsáveis por elas mesmas, independente de quantos anos já tenham vivido.

Então você decide não dizer mais nada, porque já não sabe o que é alucinação e o que vão pensar de você e quanto tempo vai ficar preso na sala se disser o que pensa. Você só pode esperar pela frase que certamente virá. "Você precisa entender que fazemos isso pelo seu bem, Frank. Você precisa ficar e vão te ajudar no tempo em que estiver internado". Você finalmente entende: está louco.

Quando eu o vi pela primeira vez eu poderia adivinhar que ele causaria minha ruína, era como se uma placa luminosa dissesse 'perigo' em letras grandes e vermelhas em cima da cabeça dele. Mas eu ignorei todos os avisos possíveis. Ele era lindo, problemático e popular. Claro que eu, um antissocial estranho e arruinado, me interessaria.
Quando conheci Gerard ele era namorado da minha única e melhor amiga, eu o odiei, de verdade. Ele era o garoto rebelde e popular e tinha toda aquela áurea artística o rondando, escrevia, pintava, era líder do grupo de teatro, tinha uma banda e tirava notas boas mesmo nunca estando dentro da sala de aula. Ele promovia protesto no pátio da escola e defendia as minorias. Enquanto eu era invisível, ninguém se importava de verdade com minha presença e notas medianas, eu não tinha amigos e passava os intervalos na biblioteca. Ele queria o brilho e o estrelato e eu só queria sair dali o mais imperceptível possível. Não podíamos ser mais diferentes, embora depois de alguns meses eu descobrisse que éramos atormentados pelos mesmo fantasmas do passado.

Gerard e eu passamos da antipatia aparente a uma espécie de amizade estranha muito rápido. Éramos obrigados a almoçar na mesma mesa, tínhamos aquela pessoa em comum que era a única coisa que parecia nos ligar. Ele sempre estava tagarelando com ela enquanto eu me escondia atrás de um livro ou de fones. Mas inevitavelmente eu tive que participar de algumas conversar e responder algumas perguntas, o que me fez notar que tínhamos mais coisas em comum do que eu gostaria.

Todas as manhãs eu ganhava carona até a escola, só que meus pais iam trabalhar muito cedo e eu chegava uma hora antes das aulas começarem. Gerard morava a alguns quarteirões de distância da escola e também ia mais cedo, pois odiava o novo marido de sua mãe e preferia sair antes que o padrasto acordasse. Foi ali que eu o vi pela primeira vez, mas antes do namoro com Lyn-Z, minha amiga, eu apenas o observava sentar encostado ao mastro da bandeira com o brasão do colégio. Logo após o namoro que selou meu destino, Gerard foi se aproximando do meu canto isolado, em baixo de um pinheiro que eu costumava chamar de Joe, até estar sentado ao meu lado disparando frases seguidas sobre o templo budista que frequentava ou Goethe ou a ascensão do capitalismo ou até sobre a quantidade de calorias no lanche da cantina, uma vez falou sobre esquilos. Enfim, ele parecia ter infinitos assuntos aos quais poderia fazer monólogos por dias inteiros. Mas em algum momento entre os trinta minutos que nos separava da aula, Lyn-z aparecia, e Gerard e ela pareciam automaticamente esquecer da minha existência quando se viam. Os dois ficam trocando saliva enquanto eu ouvia rock clássico e lia qualquer porcaria yaoi que eu encontrasse, até finalmente o sinal tocar e nos separarmos até a hora do almoço. Eu estava no último ano, Lyn-z também, mas Gerard estava uma série atrás por reprovar por faltas, como eu disse: ele não costumava assistir a muitas aulas.

AlucinaçãoWhere stories live. Discover now