Capítulo I
Era a primeira vez que eu entrava naquele prédio da Rua Sete de Setembro, no centro do Rio. Na mente, ainda ecoava a voz feminina que, ao telefone, soara tensa e atemorizada. Raramente abria uma exceção para ir ao encontro de algum cliente. Talvez por preguiça, prefiro recebê-los no conforto do meu escritório no Edifício da Avenida Central, quando posso estudá-los sentados do outro lado da minha mesa de trabalho, e assim me divertir com suas idiossincrasias, seus tremores, seus suores, suas mãos sem controle.
Era um consultório dentário. Como todo consultório dentário, exibia claros sinais de tentativas quase bem sucedidas de dar ao ambiente uma aparência acolhedora e aconchegante: um aquário enorme com uma iluminação e peixes fora de contexto, duas poltronas razoavelmente elegantes, spots de luzes em um teto rebaixado em gesso, um grande sofá, uma mesa de centro com algumas revistas do semestre passado. Não havia recepcionista, de modo que tive que indagar a uma senhora que aguardava com um lenço no rosto, e que provavelmente sofria com algum siso mal situado, se aquele era o consultório da Dra. Cíntia.
Sentei-me no sofá na ponta oposta a que a senhora ocupava e, passei a acompanhar o programa de notícias que passava na pequena TV presa a um suporte próximo ao teto, à direita de onde ficava o aquário.
Após uns quinze minutos, a porta se abriu, e uma senhora acompanhada de uma adolescente despediu-se da Doutora. Era um belo espécime de fêmea, a dentista. Estatura mediana, magra, com traços finos e marcantes, um nariz inquisidor, olhos cor de amêndoas, cabelos ondulados que lhe caíam sobre os ombros. Ao me ver, perguntou se eu tinha hora marcada. Identifiquei-me, e ela, um tanto desconcertada, como se as outras pessoas pudessem adivinhar o meu trabalho, disse que me atenderia assim que terminasse com a senhora com o lenço no rosto.
Foi interessante notar seu embaraço, sua timidez, que faziam um contraponto divertido à aura de profissionalismo que circundava sua figura. É claro que não consegui mais me concentrar no noticiário: caminhão tombado na Avenida Brasil, caos no trânsito, protestos de rua em frente ao Palácio da Guanabara, nada, absolutamente nada, poderia distrair meus pensamentos do seu foco: as formas voluptuosas da Dra. Cíntia que se insinuavam por baixo do uniforme branco e justo. Provavelmente, não haveria mais pacientes agendados para aquele fim de tarde. Depois que ela terminasse com a senhora do lenço no rosto, teria todo o tempo para me expor seus problemas, dilemas, medos e inseguranças.
Eu sou novo no ramo e, talvez pelo fato de não ter contato com colegas que atuam na mesma área, não me considero um amador, tampouco me sinto inseguro, como ocorria quando iniciei minha carreira como advogado e, mais tarde, como delegado. Após a aposentadoria, decidi abrir o escritório de investigação particular. Não sou daqueles que colocam anúncios em jornal e se encarregam de casos vergonhosos envolvendo infidelidade conjugal. Normalmente, os clientes me são indicados por colegas que continuam na Polícia. São parentes de vítimas de latrocínio, homicídio, desaparecimento, que redundam em casos arquivados após anos de investigação. Atuo, assim, no nicho de mercado aberto pela falta de tempo, verbas, infraestrutura e pessoal da polícia investigativa. Aqueles que têm condições para arcar com os custos de uma investigação paralela contratam meus serviços.
Quando algum colega esbarra comigo vestido de terno e gravata caminhando pelo Centro da Cidade e me pergunta por que não decido parar com essa estória de investigador particular, e abraçar de vez a aposentadoria como uma justa recompensa por 25 anos de dedicação à Polícia, sempre respondo que trabalho para economizar com o analista.
Depois do terceiro divórcio, decidi não mais me arriscar em aventuras matrimoniais. Nunca pude, tampouco, talvez pelo tipo de trabalho que tinha, ser um pai muito presente, de modo que, hoje, meus filhos raramente me procuram, não que eu não tenha sido um pai amoroso, carinhoso e compreensivo, mas por perceberam que eu sempre fora independente, com meus hábitos, rotinas e idiossincrasias, meu cachimbo, meus vinhos e minha mania de devorar livros, trancado na minha pequena biblioteca. Assim, talvez como um sinal de respeito, ou retribuição – já que nunca fiz o tipo do pai controlador –, meus filhos foram se mantendo a distância.Ligam sempre antes de aparecerem na minha casa, e raramente se convidam para um jantar ou um cinema. Hoje, embora ainda solteiros, já moram sozinhos, têm suas carreiras, suas vidas, seus vícios e paranoias, como todo ser humano normal.
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O CASO DA VIÚVA ALEGRE
Mystery / ThrillerO delegado aposentado da Policia Civil e, agora, investigador particular, acaba enredado no caso da jovem cliente que o contrata para investigar o assassinato do marido. Ele conta com a ajuda preciosa de Cida, sua sócia no escritório, e antiga pupil...