Capítulo Único

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Este relato foi escrito a pedido da figura histórica da revolução de Panem conhecida como o Tordo ou simplesmente Katniss Everden. Fui seu psiquiatra por dois anos e assisti com dor silenciosa e profunda a queda da maior heroína que a história já concebeu. O que será relatado aqui ocorreu em meados de novembro de 2078, são palavras escritas por nosso Tordo em amontoados desorganizados de papéis amassados e degradados pela ação do tempo. Seu último desejo antes de falecer foi que estas cartas fossem de conhecimento público. Desconheço as razões por trás deste pedido, porém, ao ler o que haviam naquelas páginas, suspeito que Katniss Everden quis se despir de suas asas de tordo e se mostrar em sua verdadeira forma: um ser humano violado pela ganância, usado como um animal para entretenimento e desgastado por expectativas extraordinárias.

Segue à baixo o relato da heroína mais imperfeitamente humana e a mais real que já foi registrada na história da humanidade, sem glorificações fantasiosas e falsas exaltações.

Vou esquecer o sangue em minhas mãos de companheiros, aliados e amigos, vou desmoronar e debochar da face de minha irmã que assombra-me em sonhos, acusando-me chorosa e apontando seu pequenino dedo contra um coração que metaforicamente já não está mais vivo em meu peito. Vou escarnecer da expressão de Finick enquanto era devorado vivo por bestantes, vou soltar maldições para a vadia desequilibrada da mulher que me pariu, irei escarnecer da morte de Peeta, debochar e cuspir em todos os mortos que me acusam de fracasso.

Irei me levantar, rir e tropeçar por está gaiola dourada e oca que dizem ser meu lar e irei urrar por álcool. Gargalharei da piedade nas faces que me cercam, gritarei obscenidades para aqueles que se atreverem a derramar sua falsa luz neste pequeno passarinho de asas cortadas.

Oh, Hamitch se pudesse me ver agora... reduzindo-me a mesma decadência que reduziu você à um porco bêbado. Será que choraria pelo passarinho ou permaneceria ao lado da garota que outrora, em vidas distantes e passadas, em uma outra época, onde a sede ingênua de libertação e justiça era o que nos movimentava e nos impedia de olhar para dentro de nós mesmos e ver as feridas que o tempo não poderá cicatrizar em nossas almas tão devastadas pela pior desgraça que um homem poderia criar para si mesmo: a guerra.

Talvez você risse arrogantemente da criatura patética diante de si (mas sei que poderia encontrar uma identificação confortável nisto). Talvez você se sentaria ao meu lado e dividiria uma garrafa de Whisky com gracejos hostis sobre a insensibilidade do mundo perante nossas vidas inúteis.

Será que aqueles que em tempos de sangue, conspirações e luta, que se embebedaram das palavras causadas pela espontaneidade de eventos tragicamente extraordinários saídos dos lábios do maior símbolo da revolução de nosso estado, iriam reconhecer o Tordo em uma mulher fraca, feia, de olhar despedaçado e ossos proeminentes por debaixo de uma pele fina e isenta de cuidados?

Já não sei quem é essa mulher de aparência hostil e louca que me encara raivosamente nos reflexos dos espelhos. Então, passei a evitá-los, pois temia me confrontar com está desconhecida que me encarava como se conhecesse cada janela de minha alma arruinada.

Me dizem que fui uma menina jovem e forte. Me descrevem como descreveriam os heróis pateticamente moralistas e ridiculamente corajosos de lendas fantásticas encontradas em literaturas épicas.

Mas eu nunca fui capaz de reconhecer este alguém que existe apenas no imaginário popular.

O forte, revolucionário e corajoso Tordo irá para os livros de história. A destruída Katniss Everdeen será ignorada e esquecida.

Eu amaldiçoo este Tordo por esta era e por todas na qual ele ecoara como símbolo da resistência dos fracos e oprimidos por um sistema abusivo.

Eu bebo sofregamente para esquecer a desumanização de minha própria história. Bebo para poder esquecer está vadia que se tornou mais um dos milhões do epítome de um herói inspirável e digno de ter suas façanhas contadas para as crianças de gerações futuras para que possam ter uma figura exemplável na qual se espelhar.

Fui mais uma vítima da distorção da verdadeira história.

Agora o quê sou além da sombra de um Tordo que foi esquecido e marginalizado?

Panem nunca amou Katniss Everdeen.

Panem amou o Tordo.

Eu não sou uma heroína perfeita.

Eu sou um ser humano imperfeito.

Katniss Everdeen faleceu em 2080, apenas três dias antes do ano novo, com quarenta e sete anos por insuficiência de nutrientes e desidratação. Ela apresentava depressão profunda e estava em reabilitação devido aos problemas com álcool.

Como é a maldição de todos os heróis, a história só se lembraria da figura que os inspirou e não do ser humano que o formou.

Panem não chorou a morte de Katniss Everdeen.

Através deste relato, a pedido de minha falecida paciente, deixo aqui à todos aqueles que amam o Tordo, o legado de Katniss Everdeen.

Descanse em paz.

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⏰ Última atualização: Dec 15, 2016 ⏰

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A Queda de Uma HeroínaOnde histórias criam vida. Descubra agora