Antes de romper o sol, todos nós estávamos de pé, despertados através das badaladas de um sino e formávamos uma fila no terreno da família Patel para sermos contados pelo feitor e seus ajudantes. Eles caminhavam através dos escravos; o feitor à frente nos olhando severamente, tão superior e prepotente que me dava nojo.
Como era esta mesmice todos os dias, após a contagem rezavam uma oração que era repetida por todos os negros, inclusive eu, mesmo que contra a vontade.
Obviamente eu sonhava com a liberdade e nunca fiz muito o gênero religioso, porém o chicote pendurado na cintura de Leopoldo, o feitor, não deixava espaço para dúvidas sobre o que aconteceria caso não obedecêssemos.
Assim que a singela prece fora finalizada, nos sentamos no chão enquanto as senhoras – a meu ver – que trabalhavam na cozinha serviam com um gole de cachaça o feitor e seus capatazes e uma xícara de café preto bem forte como alimentação da manhã para nós. Aquela pequena xícara não era o bastante para acabar com nossa fome matinal, mas era o suficiente para nos manter até a hora do almoço. Talvez nosso organismo só tenha se acostumado com pouca alimentação pela manhã, que se sente satisfeito.
Suspiro deixando meus olhos vagarem pelos meus companheiros de raça. Eu queria poder dar-lhes uma vida descente, com comida a vontade, conforto, sem qualquer tortura ou violência, mas infelizmente isso era o que nos restava. Suar muito sem nenhuma recompensa. Mas eu sentia em meu âmago, não seria assim por muito tempo e eu iria agarrar qualquer oportunidade que aparecesse com unhas e dentes. Eu acredito que a liberdade virá.
— Agora!
Um grito seguido de um estrondo me fez despertar dos meus pensamentos, fazendo-me levantar num pulo, assustada. Os negros corriam para lá e para cá parecendo baratas tontas.
Droga! Era uma tentativa de fuga.
Praguejei todos eles, pensando o quão idiotas são por tentarem mais uma de suas fugas quando o Duque havia ordenado reforçar a segurança para que tais nem pensassem na possibilidade de uma nova fuga, mas o duque não contava com o fato de que: eles são idiotas. Segurei a barra do vestido, levantando-a um pouco e pus-me a correr para longe daquela confusão.
Se eles já haviam começado a confusão, eu apenas iria seguir o fluxo e seja o que Deus quiser.
Sentindo meus pés descalços baterem forte contra a terra, corro em direção à frente da casa, torcendo para que ninguém me alcance. Meu coração batia a mil e eu mal conseguia respirar, só rezava para conseguir chegar à floresta que ficava depois dos limites do portão de entrada da fazenda. Eu me desviava com dificuldade de todos e via pelo canto dos olhos alguns dos meus usando a capoeira contra os capatazes do duque e não pude deixar de sorrir. Estava orgulhosa deles por continuarem tentando, mas ainda eram uns idiotas.
A escravidão pode ser definida como o sistema de trabalho no qual o indivíduo (o escravo) é propriedade de outro, podendo ser vendido, doado, emprestado, alugado, hipotecado, confiscado da forma mais humilhante possível. Legalmente, o escravo não tem direito. Não pode possuir ou doar bens e nem iniciar processo contra seu dono, mas pode ser castigado e punido severamente como acontece com muita frequência nesta fazenda. E bem sei como serão castigados os capoeiras que forem pegos.
Não havia saída desse inferno. Mas temos que tentar e tentar fugir, por quantas vezes forem necessárias, nem mesmo importando as chibatadas que levaremos ao fracassar mais uma vez.
A liberdade tem um preço e tem que persistir até finalmente conseguir, ultrapassando todos os obstáculos que vemos pela frente, e chegar ao almejado prêmio que todos querem e poucos conseguem. Seguir o horizonte e encontrar um novo lar para construir uma vida sem chicote, sem tronco, sem tortura.

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1818
FanfictionDe quem é aquela sombra que me mantem refém? Estive aqui por muito tempo que mal consigo lembrar. De quem é esse sussurro me dizendo que nunca fugirei? Eu sei que em breve eles chegarão para me encontrar, mas juro que estou me acostumado a ser manti...