Naquele dia, a tempestade negra começou momentos após o sol desaparecer no horizonte.
Em resposta, eles se moveram rápido. As tochas que iluminavam a única rua da aldeia foram apagadas com movimentos frenéticos; pais recolheram as poucas crianças que ainda brincavam do lado de fora, envolvendo-as em panos no momento em que entraram em casa; portas foram fechadas e as janelas, cobertas, e então todos esperaram, tensos e de olhos fechados, pela escuridão que racharia a superfície e escaparia em direção ao céu.
Todos menos Ankia.
Ela assistiu do alto de uma árvore uma coluna negra surgir do solo e erguer-se para as nuvens, e então outra, e mais uma logo após. O chão sacudiu e o som da terra sendo aberta rasgou o ar, mas mesmo com os galhos sacolejando à sua volta Ankia não os percebeu; seus olhos estavam voltados para a maior coluna da tempestade, um amontoado de sombras que se contorciam como serpentes além dos limites do vilarejo.
Serpentes. A palavra pesou em sua língua, e ela a murmurou baixinho enquanto o céu se retorcia em escuridão acima de sua cabeça. Os sussurros se intensificaram, quase como se reagissem à sua voz, e por um instante Ankia pensou ter compreendido o que eles queriam dizer, seu significado roçando sua mente com o menor dos toques, os sons se embaralhando como uma língua que ela sempre soubera falar, mas da qual havia se esquecido. Ankia esperou, tensa, seu coração a única coisa a soar em seus ouvidos.
Mas então o momento passou e os sussurros voltaram a ser o que sempre haviam sido: um rumorejar no fundo de sua mente, incansável e interminável. Quase um lembrete.
A garota se arrepiou, sua respiração presa na garganta. Estou ficando louca, pensou, mas sabia que não era verdade. Os sussurros eram reais. Tinham que ser.
Ainda assim, Ankia hesitou. A chuva de água negra começara a cair, ensopando seus cabelos escuros e a roupa surrada que usava, e um novo estrondo soou, seguido de mais uma coluna de sombras. Ela podia sentir a tempestade em seu peito agora, uma vibração constante que crescia a cada segundo em uma mistura de raiva, melancolia e dor. Era tão intensa que tomava todo o seu corpo em um ritmo crescente e não exatamente agradável, mas que espantava o frio mortal que acometia o mundo naquelas horas negras. Uma sensação, aliás, a qual ela já estava acostumada.
A attoria mordeu o lábio e apertou com força os galhos em que se apoiava, seus olhos ainda nas sombras que subiam em direção aos céus. Tinha que agir agora, ela sabia, antes que o medo a segurasse de novo.
Respirando fundo, Ankia olhou para cima uma última vez e saltou para o chão.
~*~
Os sussurros a acompanhavam desde que ela conseguia se lembrar, quase inaudíveis quando o mundo estava calmo, e insistentes, vorazes, sempre que as tempestades tomavam o céu e a terra.
"Está ouvindo?" ela havia perguntado a Dia uma vez, quando os outros attorias ainda a mantinham por perto, quando o legado de sua mãe ainda era o suficiente para fazê-los ignorar o que ela era. "Estão sussurrando."
Dia havia franzido a testa, seus olhos brilhando na sala escura. Do lado de fora, as sombras rugiam e o vilarejo estava mergulhado em silêncio. "Quem está sussurrando, Ankia?"
"A escuridão," ela respondera. "A tempestade."
A expressão no rosto do attoria mudara em um instante, seus lábios se reduzindo a uma fina linha severa, os olhos castanhos perdendo todo o calor. Ankia se arrependeria do que dissera naquele dia para sempre; Dia era o único que a tratava como se ela fosse apenas mais uma criança sob seus cuidados, mas lá no fundo ele ainda a considerava uma estranha, uma forasteira. Ankia sempre seria o inimigo, e naquele momento ela o lembrara disso.
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A Garota Que Escutava a Escuridão
Fantasy"Não havia palavras em meio aos sussurros; a língua das serpentes era um caos de sons que exprimiam dezenas de emoções e montavam sua mensagem como peças de um quebra-cabeça. Ajude-nos, elas pareciam dizer, dor pingando de cada sílaba. Liberte-nos...