Capítulo único

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O usuário de nen mais habilidoso do mundo não tinha o poder de descobrir todas as pequenas formas de infortúnios e surpresas escondidos nas entrelinhas da tresloucada desventura que era sua vida. Por que, então, um rapazinho convencido de cabelos negros espetados de gel seria capaz de dominar a arte das leituras misteriosas que toda a sorte de salafrários daquela agitada cidade invocava para si?

Metido no terno dos pés à cabeça, ele esquentava o traseiro na cadeira velha do quarto mal iluminado, forçando os olhos miúdos de sono diante de um livrão pesado que deveria ter umas boas mil e quinhentas páginas, quem sabe até mais. As letras quase pareciam formiguinhas. Não seria exagero lançar mão de uma lupa para conseguir enxergá-las.

Leorio coçou o nariz, sentindo o maldito espirro que estava preso há horas, mas se recusava a se aventurar no mundo. Ele tinha alergia. Sentia aquela irritante comichão sempre que se deparava com folhas de papel envelhecidas pelo tempo e pela falta de cuidado. Os deuses sabiam há quantas eras o tijolão deitava-se na prateleira da estante dos fundos da biblioteca. Só para ler seu título, Leorio teve de esfregar os dedos várias vezes na capa dura, o que lhe conferiu uma segunda pele quase negra.

Parecia um corcunda quando chegou ao seu quarto. Usando de todo o cuidado que a exaustão lhe permitia, pôs o livro sobre a mesa. Em outras palavras, simplesmente lançou o objeto, antes que suas últimas forças se esvaíssem. O barulho do impacto mais pareceu o de uma bomba nuclear. A guria do cômodo ao lado reclamou, dizendo que já passava das onze, e ela desejava dormir.

— Ao menos você vai dormir — resmungou Leorio, sentando-se na cadeira.

Ele não tinha outra escolha. Pelo menos não uma escolha agradável. O professor exigira um trabalho impossível para castigar a turma após as reclamações de que ele fumava em sala de aula. Anotou em pedacinhos de papel nomes de bichos que mais pareciam invenções de um poeta bêbado e realizou o sorteio. Leorio, cujas mãos só serviam para vacinar as crianças chorosas do hospital e para acariciar curvas que não vale a pena descrever no momento, tirou logo o nome mais zoado de todos.

Antes tivesse de soletrar pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose. De trás para frente.

O monstrinho sorteado era raríssimo. Vivia nas profundezas das cavernas submersas dos mares gelados do deserto de gelo do sagrado reino de Oshawott, atualmente um grande pedaço de nada protegido por formações rochosas imensas que o separavam da floresta de uma tribo perdida cujas últimas memórias haviam desaparecido há mais de mil anos. Em bom português, poder-se-ia dizer que a criaturinha morava na puta que pariu.

— Professor cretino de merda... Tomara que morra velho, sozinho e acabado em uma casinha que fede a bacalhau... — Voltou a resmungar Leorio, catando uma folha de papel e um lápis para começar a fazer o trabalho.

Ele não sabia, mas deveria se considerar um sortudo. O livro que tinha diante de si era o único na faculdade inteira, talvez o único do país, ou mesmo do continente, que possuía um verbete sobre o infame animal. Tudo o que ele precisava fazer era copiar as formiguinhas e, quem sabe, arranjar uma maneira de fazer uma fotocópia do desenho tosco que um pesquisador fizera após avistar a criatura em uma de suas viagens. Mas também era possível que ele estivesse apenas delirando de frio. Quando se está sozinho na puta que pariu, é difícil saber o que é mais provável.

Leorio pigarreou para limpar a poeira que se prendia em sua garganta e iniciou sua árdua tarefa, copiando palavra por palavra e que se danasse a ética na pesquisa; ninguém em sua sã consciência o acusaria de plágio. Já seria um milagre o simples fato de ele ter encontrado um livro que falava do animal que sorteara. Bendito seja Kaito, aquele anjo que não pestanejou quando o pobre Leorio foi lhe pedir ajuda.

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