Sacrificado

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Ele correu. Correu o mais rápido que pode, mesmo sabendo que o seu máximo de nada adiantaria. Ele podia ouvir seus passos cada vez mais próximos e as risadas. Aquelas risadas que o faziam tremer dos pés à cabeça e lembrar-se dos momentos que havia passado nas mãos deles e da dor. Como ele queria que o som da sua respiração apressada ou dos seus batimentos acelerados encobrissem aquelas risadas macabras.

Ele tremia e chorava, o desespero tomando cada pedacinho da sua alma. Suas esperanças se esvaiam e ele rezava para todos os deuses nos quais conseguia pensar e pedia que o protegessem, que impedissem que eles continuassem correndo, que eles desistissem dele.

Os galhos pareciam ficar cada vez mais próximos, cortando vez ou outra sua pele e rasgando partes das suas vestes.

De repente, todos os sons à sua volta cessaram. Continuou correndo, forçando suas pernas cansadas a manterem o ritmo. Naquela bolha muda, olhou para trás procurando algum vestígio que seus perseguidores continuavam atrás de si. E nesse momento, nesse maldito momento, ele assinou seu atestado de óbito.

Uma raiz que saltava para fora da terra agarrou seu pé, o levando ao chão. A bolha se rompeu. Ouviu o som do seu corpo batendo contra o solo duro e seu tornozelo se quebrando, ouviu as risadas se aproximarem e aumentarem e se cessarem junto com os passos. Ouviu a gargalhada infernal que veio depois e as hienas a acompanharem. Quase pode ouvir o som do resto de suas esperanças que ainda guardava o deixar.

Por um segundo, a dor e o desespero o cegaram. No instante seguinte, sentiu um chute se chocar contra a sua barriga, o fazendo rolar e olhar seu agressor. Alto e forte, os cabelos loiros, curtos e encaracolados, capazes de enganar qualquer garota e fazê-la pensar que ele parecia um "anjinho", e o blusão branco e azul marinho com um brasão de águia que o atormentava todas as noites em seus pesadelos, nos quais revivia as surras que levava daquela gangue do colégio quase que semanalmente. Não viu nada disso. Tudo o que conseguiu enxergar eram aqueles pequenos olhinhos encolhidos pelo prazer e sua boca contorcida em um sorriso maldoso.

A um comando, ele o agarrou pelos braços e o arrastou pelo chão de terra e folhas secas até o meio do grupo. Havia mais três. Os mesmos blusões, os mesmos olhares e sorrisos. Afastou-se, ele estava no meio da pequena clareira e no meio dos quatro. Sentiu seus pelos se eriçarem a espera do que viria depois.

O líder do grupo, o mais alto e forte e menos burro da gangue, veio até o lugar onde ele estava largado, colocou sua mão em seu queixo e o fez olhar para seu rosto. Lembre-se de mim no inferno. Sussurrou entredentes e sorriso. Depois lhe deu um soco que atingiu o lado esquerdo da mandíbula e o lançou metros para trás. Seus dentes se chocaram e ele se surpreendeu que nenhum deles tivesse se rachado ou quebrado com o impacto.

Abriu seus olhos a ponto de ver outro soco indo com velocidade em direção ao seu nariz. Sentiu o sangue espirrar quando ele se quebrou. Espirrar e depois escorrer pelo seu rosto até a sua boca, contornando-a e continuando seu caminho até o queixo e então pingando em sua camiseta. Soltou um gemido baixo de dor e pode ouvir as risadas que ele gerou a sua volta.

Um chute lhe foi aplicado nas costelas, o fazendo cair de lado na terra. Duas mãos voltaram a lhe erguer, o puseram de pé, mas ele caiu de joelhos por causa do tornozelo fraturado. Voltaram a lhe suspender sem desta vez o soltar. E um punho o acertou a boca do estômago, fazendo todo o ar deixar, audivelmente, seus pulmões. Antes que pudesse inspirar novamente, outro soco acertou o mesmo lugar. E outro. E outro. Uma lágrima caiu-lhe os olhos. As risadas voltaram, pode sentir seu corpo vibrar enquanto aquele que o mantinha erguido gargalhava.

Sentiu um chute acertar sua perna machucada e gritou de dor. As risadas aumentaram e ele foi jogado no chão. Ficou algum tempo encolhido, suas mãos apertavam a sua calça com força, como se aquilo fosse fazer a dor e tudo parar. Procurou inspirar o máximo de ar que conseguia, mas até esse ato começava a ficar difícil.

Ouviu o som de folhas sendo amassadas conforme passos se aproximavam.

Um chute acertou sua barriga fazendo-o arquear ainda mais o corpo. Antes que pudesse se recuperar, outro pé acertou suas costelas. O líder havia resolvido dividir a pesa com o resto do bando. Outro pé em sua coxa, braços, costas. Sua cabeça. Antes que ele tombasse no chão, os chutes cessaram.

Rezou para que eles fossem embora, para que o deixassem ali e nunca mais voltassem para buscá-lo. Ele suava frio. Tremia. Já não chorava mais, a dor era tão intensa que mesmo produzir algumas poucas lágrimas dispendia mais energia do que podia oferecer. Estava encharcado de suor, sangue e lágrimas. Sentiu um bolo se formando no seu estômago e subir, cada lugar pelo qual passava doía, chegou à sua boca e saiu por seus lábios. Ele vomitou sangue e bile. Um gosto amargo e férreo tomou conta de sua boca. Outro bolo subiu e foi expelido.

Inspirou fundo e gemeu com a dor causada pelo ato. Mais chutes nas costelas. Sentiu algo se partir dentro de si, talvez o coração. Espremeu mais seus olhos já cerrados. Outro chute. E outro e outro. Por todo o corpo. Quando seus músculos e ossos já não mais aguentavam o próprio peso, caiu sobre o vômito, suor, sangue, lágrimas e o que quer que houvesse naquela terra.

Acertaram sua cabeça uma, duas, três vezes e mais, até ele perder a conta. A dor já havia o tomado por inteiro. Ele quase não sentia mais, apenas os impactos e seu tronco e membros sendo jogados de um lado para o outro pelos golpes aplicados.

Não percebeu quando cessaram. Não ouviu as risadas que enchiam a clareira, muito menos quando elas se afastaram; não se ouviu sozinho. Não viu os pés se afastaram. Não sentiu as gotas leves da chuva tocarem seu corpo e lavarem aos poucos cada centímetro da sua pele impura. Tudo o que tinha era consciência, da sua imobilidade, da inutilidade de se fazer qualquer tipo de oração naquele momento, do fato que já não mais o atormentava e, muito pelo contrário, servia agora de consolo: ele ia morrer ali. Só esperava que não demorasse muito.

Não veria os hematomas se formarem, os ossos se reafirmarem ou os cortes se curarem. Não veria o grupo de busca o encontrar. Não veria os seus pais chorarem sobre sua camiseta suja de vômito, sangue e terra e se perguntarem por que aquilo tinha que ter acontecido com o filho deles. Não veria aqueles quatro garotos serem presos ou dizerem que se arrependeram. Não veria três deles serem soltos algumas semanas depois com um sorriso no rosto e o quarto ter que esperar um mês a mais para fazer o mesmo sem, porém, sorrir. Não o veria, com lágrimas nos olhos, pegar a arma do pai policial e atirar contra a própria cabeça. Não veria outros milhares de adolescentes morrerem da mesma forma que ele. Não veria o fim disso tudo.

Não veria nada, não ouviria nada.

Só o silêncio e a escuridão.

No fim somos todos vítimas.

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⏰ Última atualização: Jan 15, 2014 ⏰

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