Capítulo único

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Acordo com a cabeça ainda rodopiando sem parar. Nos ouvidos parece que entra uma banda inteira de percussão que, auxiliada por um zumbido distante, cria uma música mal orquestrada. O corpo parece sustentar o peso de um lutador de sumô, mesmo ocupando pouco mais que o espaço de uma bailarina.

Antes de levantar, levo as mãos lentamente ao rosto, detectando crostas de rímel e delineador onde não deveriam estar. Ótimo. Como se minhas olheiras precisassem de ajuda para ficarem mais escuras. Mas já estou acostumada a não ser uma bela visão pela manhã. Com a aparência de uns 40 anos e os reflexos e a velocidade de pensamento de uma senhora de 80, não seria um pedaço de papel plastificado que me convenceria ter apenas 27.

Depois de quase cinco minutos parada na mesma posição, baixo o braço e percebo uma presença da qual me esquecera. Ao meu lado ainda repousa em sono profundo um conjunto de ombros largos, pernas compridas, barriga um pouco saliente e cabeça de menino. Não consigo reprimir a raiva por aquele rosto angelical permanecer imaculado, enquanto o meu parece o retrato do inferno.

Pudera, aos 22 anos minhas ressacas também eram leves como a dele. Como eu fui ficar tão mais suscetível aos efeitos do álcool em apenas cinco anos? Ok, antes eu era mais fã de cerveja e vinho, e minha inseparável companheira atual, a vodca, sempre teve a fama de arrasadora. Mas não dá para negar que as visitas que ela me fazia naquela época não deixavam tantos estragos.

Ainda remoendo a inveja pelo novinho, me levanto, tentando tomar o cuidado de não acordá-lo. No fundo, acho que eu poderia cair sobre ele que não o despertaria. Quais são as chances de um organismo tão fresco e vivo ter entrado em coma alcoólico? Não, seria muita canalhice se mesmo assim ele continuasse bonito. E eu posso ter levado muita pancada da vida, mas sei que ela não pode atingir esse nível de injustiça.

Vou cambaleando até o banheiro, desesperada por uma ducha gelada antes de ir tomar um café bem preto. Passo reto pelo espelho, tentando evitar o contato com meu reflexo até mesmo pela visão periférica. Com certa dificuldade, puxo a porta de correr do box; aquela porcaria sempre trava, e é lógico que ela iria fazer o máximo de barulho justo quando eu quero ser silenciosa. Mas, aparentemente, isso não incomoda o rapaz na minha cama.

Entro e vou direto abrir o chuveiro, distraída. Foda-se se eu molhar o resto do banheiro todo, depois eu seco. Melhor que sofrer de novo para fechar essa porcaria dessa porta. No entanto, segundos antes de a água começa a cair, percebo uma calcinha pendurada na torneira. Turquesa, toda de renda e definitivamente não é tamanho PP. Não é minha. Eu só uso preto ou branco e sempre de algodão, porque é o máximo que se consegue fazer quando compra lingerie - e qualquer roupa, na verdade - na sessão infantil.

Aí sim, finalmente, minha amnésia alcoólica vai passando. Maldita vodca. Primeiro, me vem um flash daquela mesma calcinha, dessa vez envolvendo um corpo bem mais desenvolvido que o meu. De pele morena, cheia de curvas e apresentando uma desenvoltura de fazer inveja ao tirar a calça jeans. Os olhos fixos nos meus, enquanto o garoto (que agora dorme feito uma pedra) beijava sua nuca. Mas a lembrança das ações dele são borradas, porque claras me vem apenas as dela.

Logo em seguida, me recordo do sorriso que ela me deu no bar onde eu estava com esse rapaz, num encontro às escuras organizado por uma amiga em comum. Além de bonito, ele era até interessante e eu nunca me incomodei com idade, mas sua falta de atitude durante a conversa denunciava: se não era virgem, só transara com uma única pessoa. Com esforço, me obrigava a lembrar de que ele estava saindo de um namoro longo e o dava um desconto.

Mas isso não foi o bastante para que eu evitasse trocar olhares com aquela morena que me comia de longe. Vez ou outra eu sorria de volta, quando o garoto levava o copo de caipirinha à boca e me ignorava por uns segundos. Ela demorou mais umas três doses nossas e duas dela para vir nos abordar em nossa mesa. Àquela altura nossa conversa estava descontraída, mas nada íntima, então nenhum dos dois se opôs à sua interação.

Sobriedade ÉbriaOnde histórias criam vida. Descubra agora