No final das contas não foi tão difícil deixar aquele local e me pergunto como não pensei nisso antes: Negar tudo que eu sentia, fingir ser completamente pacífica e dar a entender que quero ter uma vida normal, também definida como monótona e tediosa.
A parte mais difícil foram os remédios. Ao contrário do que se espera, eles não são feitos para curar. Eled confundem a mente e te deixam lerdo, para que se você não melhorar, pelo menos fique fácil de controlar. Eles me distraiam dos meus objetivos, mas os tomar do jeito certo e na hora certa foram essenciais para minha saída do manicômio.
Olho para meu pai no banco do motorista no momento em que esse repousa a mão na minha coxa, um sinal claro de que está preocupado, mas tenta disfarçar. Ele me dá um sorriso antes de entrar em um assunto que ele acha delicado:
-Então, florzinha. O que você quer fazer?
-O que que você quiser, pai. Quero dizer, eu quero ir. É o melhor a fazer.
-Você tem certeza?-ele pergunta com evidente receio de que eu mude de ideia- Se formos, pode ser para sempre. Mas se você não gostar, nós podemos voltar, claro.
-Eu já disse que sim.
Não gosto do jeito que ele fala comigo. Eu sei que é preocupação, mas quando conversam comigo como se pudesse quebrar ou ter um ataque a qualquer hora é o momento que eu mais tenho vontade de estragar tudo.
Discutimos diversas vezes no último mês sobre o que iríamos fazer depois que eu deixasse o sanatório. Na verdade minha alta foi apenas hoje, mas ele já esperava que eu saísse. Como minha cidade é pequena, tão pequena que eu tive de ser internada no município vizinho por no meu não possuir hospitais, meu pai estava estudando a possibilidade de nos mudarmos para me poupar dos comentários maldosos. Depois de um tempo ele decidiu que queria voltar para a Coréia, o lugar no qual ele nasceu. Ele tem parentes lá e não tem mais nada o prendendo ao Brasil. Quer dizer, nada além de mim. E sei que se eu me recusasse a ir ele ficaria aqui comigo, mas depois de tudo que fiz ele passar acho que ele merece cada migalhinha de felicidade que eu puder oferecer.
Ele já comprou as passagens e providenciou tudo que será necessário e mesmo eu tendo concordado várias e várias vezes, ele continua perguntando, provavelmente, com medo de eu mudar de ideia. Eu não vou mudar.
A passagem comprada é pra depois de amanhã, o que significa que eu só tenho que não fazer nenhuma merda por dois dias.
Chegamos em casa e vou direto para o banheiro quase chorando de emoção. É incrível como as coisas mais simples parecem belas depois de situações difíceis.
Tiro a roupa e tomo o melhor banho da minha vida,sem restrição de tempo e com direito a água quente e um sabonete cheiroso que não resseca toda a minha pele. Lavo meu cabelo com um xampu de verdade e até passo condicionador, uma mudança considerável tendo em vista que só podia lavar o cabelo com o mesmo sabonete ressecável do meu corpo.
Passo um creme pela primeira vez em cinco anos e coloco uma roupa de verdade. Meias, camiseta, uma blusa e uma calça de moletom. Não por estar frio, mas sim por querer me livrar da lembrança de todas as noites geladas que enfrentei usando uma camisola que parecia feita de papel.
Foi também a primeira vez que eu dormi sem remédios em cinco anos. No mesmo instante que deitei na cama mergulhei em um sono profundo e sem sonhos e percebi o quanto eu estava cansada todo esse tempo.
Acordo no outro dia e ao olhar no relógio da cozinha vejo que são 15:00:
-Dormiu bem?-pergunta meu pai com um sorriso meio sofrido no rosto.
Sei que ele está lembrando da minha mãe, como sempre acontecesse ao olhar para mim. Não respondi, mas atravessei a sala e dei um abraço nele, do jeito que costumava dar antes de tudo. Ele recua por um segundo e eu quase desabo. As vezes acho que mesmo me amando ele tem um pouco de medo mim e não quero que ele tenha. Eu queria um jeito de provar que eu não sou louca, mas ele nunca vai acreditar em mim totalmente:
-Eu saí do trabalho , você quer fazer alguma coisa?
-A gente pode ver um filme?
- Claro- ele começa devagar como se fosse fazer uma objeção- Você tem algum filme em mente?
-Não, você pode escolher
Ele dá um suspiro quase de alívio e eu sei que iremos ver algum filme infantil, não que eu ligue, eu até gosto, mas sei que durante a minha saída do sanatório devem ter dado várias recomendações ao meu pai, entre elas, não me deixar ver filmes ou coisas que possam incentivar meu "outro lado".
Nós acabamos fazendo uma maratona de animações, comemos muita besteira e conversamos sobre os últimos anos que estivemos separados. Mesmo que meu pai tenha me visitado todos os meses, sempre conversamos mais sobre mim do que sobre ele e me senti muito culpada ao ver que ele parou toda sua vida por minha causa.
Fui dormir e quando acordei fiquei o dia quase todo arrumando as malas. Meu pai vendeu a casa mobiliada e não vamos levar muita coisa, pois por enquanto moraremos com minha avó, mãe do meu pai.
Quando finalmente acabo, me deito na cama e começo a imaginar. Não estava me permitindo criar expectativas, mas sei que agora as coisas só podem melhorar.
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Insane
FanfictionApós passar grande parte da adolescência em um sanatório, Ariadne tem a oportunidade de reiniciar sua vida. Nova cidade, novas pessoas e até um possível amor, as coisas parecem estar caminhando para dar certo...ou talvez incrivelmente errado. Relaci...