Ele vestiu seu melhor terno e o combinou com seu par de sapatos mais caro. Tudo para estar à altura de mais uma de suas caçadas às Belas Telas. É presidente de um grande Banco e nas horas vagas têm como hobby, ir a Galerias de Arte em busca de novos prodígios. Sempre busca algum sucessor do glorioso Dalí ou uma nova dádiva como foi Tarsila. Seu maior desejo é ser o descobridor de um novo talento, mas nunca alcançara sucesso nessa empreitada. É um colecionador voraz, não há limites quando se interessa por alguma pintura; ainda mais sendo algo macabro. Em sua coleção há quadros que, segundo as lendas repassadas por seus vendedores, foram pintados pelo próprio Diabo. Entretanto, isso não o incomoda de modo algum, pelo contrário, faz aumentar ainda mais o seu desejo em adquirir tais obras. E foi assim, num dos acasos da vida que ele encontrou a Galeria Sedah.
Naquela Segunda Feira, Stanley Barker segurava uma taça de champanhe na mão esquerda e um bloco de talão de cheques, previamente assinado e autenticado, na direita. Estava cansado, durante quase uma hora perambulou pelas alas da Galeria. Apesar de o próprio lugar em si não ter lhe agradado. Há meses morava na cobertura do Hotel Christine, sendo obrigado a realizar aquele mesmo percurso diariamente pela Avenida Central e ainda assim não recordava ter visto aquele enorme letreiro em neon: "GALERIA SEDAH". Tinha certeza de não ter visto placas ou faixas anunciando a inauguração e nem ao menos se lembrava de ter visto operários atuando no quarteirão. Mas algo o atraiu e, curioso como era, cedeu ao chamado. Agora, estava ali entediado e arrependido por perder tempo. Barker já procurava a saída quando um quadro no fim do corredor, iluminado apenas por uma penumbra, chamou sua atenção. Hipnotizado por algo além de sua compreensão, caminhou a passos cambaleantes se desfazendo da taça já vazia assim que passou por um garçom. Esbarrou em outros clientes apreciadores da arte, os quais pareciam não o ter notado, e seguiu em frente sem tirar os olhos famintos da pintura. Aproximou-se com os olhos arregalados e as mãos trêmulas ensopadas de suor. Foi obrigado a conter o impulso de arrancar a tela da parede e sem hesitar fugir dali, roubando-a.
Stanley Barker estava a viajar por outros mundos, a sonhar de olhos abertos em paisagens tão surreais quanto as obras de Dalí, quando se percebeu assinando um cheque. Um valor considerável, mas que não comprometeria em nada seu saldo milionário. A compra foi efetuada e ele flutuou até o estacionamento com os sentidos alterados. Lá ele pôs a tela no carro e virou-se para ver mais uma vez a fachada da Galeria. Por um momento tão rápido quanto um relâmpago, ele pensou ter visto "HADES". Stanley olhou mais uma vez para os grandes letreiros em neon e constatou que havia sido apenas sua imaginação, aliada à sua mente já cansada. "SEDAH" lá estava brilhando firme e imponente como o Astro Rei. O magnata entrou no carro — por precaução leu mais uma vez o nome da galeria piscando no alto — e foi para casa. Não viu os letreiros se organizarem uma última vez antes das luzes se apagarem, desfazendo a ilusão. A "GALERIA HADES" se foi, levando consigo todas aquelas almas que a habitavam de tempos em tempos, para surgir longe dali, deixando para trás apenas um terreno baldio e uma obra de arte nefasta. Mais um artifício, para garantir sua milenar colheita de almas.
[***]
No elevador que o içava em direção a seu apartamento na cobertura, Stanley rasgou a proteção colocada de forma caprichosa pelo próprio Curador da exposição em pessoa; um homem baixo e de feições esqueléticas. A pele dele parecia sem cor, sem vida. E em determinado momento Stanley podia jurar por Deus que havia testemunhado uma breve mudança na cor dos olhos do Curador. De pequenas íris verdes para olhos completamente vermelhos, sem pupila alguma. Mas antes que ele escavasse suas memórias daquela segunda feira, o sinal eletrônico do elevador soou e as portas pesadas se abriram libertando Stanley de seus pensamentos reveladores.
O apreciador da velha arte das tintas entrou em seu apartamento e se isolou do resto do mundo. Recostou a pintura em seu sofá, com a imagem da batalha virada para a mobília de couro. Seguiu na direção de sua pequena adega, onde escondido entre alguns vinhos raros, mantinha uma garrafa de Uísque. Estava ansioso para pendurar mais uma obra na parede de sua sala de estar recheada de telas com temas satânicos, mas tinha elaborado um ritual especial durante todos aqueles anos. Encheu o copo com o liquido inebriante e se dirigiu de encontro ao seu aparelho de som. Ligou-o e pôs o volume no máximo, fazendo Frank Sinatra cantar seu sucesso "New York, New York". Barker acompanhou o velho Frank e arriscou alguns poucos passos de dança e pronto. O ritual se completaria assim que pendurasse seu mais novo quadro na parede. Stanley encheu o copo de Uísque novamente, até quase transbordar e entre passos e degustações breves da bebida alcançou o quadro. Não se lembrava de tê-lo deixado jogado no chão, mas o pegou com uma das mãos e o levantou virando a tela para si. Queria ver e venerar aquela paisagem celestial.Barker bebeu mais um gole, o quinto em menos de cinco minutos, e iniciou uma contemplação de cada detalhe da pintura. O quadro retratava uma grande batalha, travada no Céu. Centenas de seres alados, vestidos com armaduras, empunhando trombetas, espadas, machados e lanças. Um deles, o que mais se destacava, empunhava uma grande lâmina de fogo. No lado oposto da pintura, voavam entre nuvens acinzentadas, um enorme batalhão de feras com asas negras e grandes chifres encurvados. Seus corpos eram bestiais e de cor amarela, alguns tinham a pele cinzenta e outros eram vermelhos como os olhos do Curador da Galeria Sedah. "ou seria HADES?!", pensava Barker enquanto analisava a pintura. Notou detalhes que passaram despercebidos antes de comprá-la: O pintor não assinou sua criação, a tinta parecia estar descascando, assim como não deu nome à tela e havia ainda algo que não soube identificar. Ele se aproximou e ao tocar a tela sentiu uma ardência na ponta do dedo. Faltava muito para o álcool agir em seu cérebro, mas, Stanley sentiu as pernas tremerem e os tendões de suas mãos falharem. Ele derrubou copo e quadro ao mesmo tempo quando percebeu o que faltava na pintura: uma das bestas não estava lá. Justo a que mais se destacava entre seus iguais, assim como o dono da espada de fogo entre os de sua espécie. O Ser Bestial havia sumido e se Barker não o tivesse notado antes — tanto na Galeria como no elevador — jamais perceberia sua ausência.
Stanley, agora com o álcool iniciando o domínio sobre ele, livrou-se do terno e recuou alheio ao mundo que girava. Estava encharcado de suor, mesmo o display de seu ar condicionado marcando dezessete graus. No chão onde a tela repousava, uma pequena névoa surgiu a envolvendo. Mesmo a contragosto, Barker se reaproximou da pintura e caiu de joelhos sem retirar seus olhos profanos da cena da batalha celestial que acontecia naquele momento. A paisagem ganhou vida, transformando a tela pintada a óleo em uma espécie de televisão de alta resolução. Stanley Barker assistiu aos Anjos exterminarem grande parte das feras vermelhas com suas lanças e espadas que mutilavam e estripavam, lançando sangue e vísceras por todo o lado. Raios e trovões dançavam diante do rosto de Stanley, que permanecia cético ao que seus olhos testemunhavam. Continuou assim até que os últimos seres com asas negras recuassem para um ponto, em que a tela não acompanhou. Os vencedores liderados pelo possuidor da espada flamejante, também recuaram. Porém, antes de desaparecerem no canto da tela, todos olharam para fora da tela. Olharam para Stanley Barker, com seus olhos brilhantes. O telespectador que continuava a suar como se estivesse em uma sauna, julgou ter visto horror naqueles olhos angelicais.
E estava certo.
Ele sentiu a brisa lançada pelas asas baterem em seu rosto e viu o líder deles apontar em sua direção. Sua boca se moveu, mas suas palavras não foram ouvidas por Barker. Por fim, os seres alados desapareceram deixando Barker com um calor infernal. Ele andou por seu apartamento desnorteado. O aparelho de Ar condicionado começava a esfumaçar, mas o sistema de incêndio não disparou. Já desesperado, começou a gritar e tentar abrir as janelas. Entretanto, nenhuma delas lhe concedeu a brisa que tanto desejava. Sua pele começou a arder, ressecar e rasgar-se como farrapos de roupas velhas e bolhas brotaram em sua carne, desprendendo-se estourando sob o calor. Stanley se despiu por completo, urrava de dor a cada bolha de sangue que estourava. Tentou o telefone, mas não se surpreendeu ao perceber que este não funcionava, assim como seu celular. Estava só, a não ser por sua coleção que reinava alheia ao sofrimento dele. Stanley as observou bem e se questionou pela primeira vez o motivo pelo qual apreciava tanto tais obras. Para ele era natural, como o inspirar e o expirar diários, mas os reais motivos de tal fascínio nunca foi algo claro para ele. A fumaça agora mais densa invadiu seus pulmões, sufocando-o sem pressa. Ele olhou para a pintura caída no chão e esta havia voltado à cena original, antes da batalha se desenrolar. Exceto pelo líder das bestas que permanecia ausente.
Enquanto desfalecia, Stanley Barker ouviu um som semelhante a cascos colidindo com o chão de mármore de seu apartamento. Cada vez mais próximo e real. Sentiu uma pressão angustiante em seu tornozelo cada vez mais intensa até que algo o içou como um simples peso de papel. De ponta a cabeça, viu algumas penas negras caídas no chão. "Penas de Corvo?", pensou. Ele não saberia dizer, nunca iria dizer. Ele viu os cascos — caprinos ou bovinos — liberarem fumaça por onde pisavam, marcando o chão como um produto corrosivo. Stanley Barker viu a sala ser preenchida por chamas que escapavam de seus amados quadros. Todos se tornaram telas vivas, retratando as chamas do Inferno. Momentos antes de ter seu corpo lançado de encontro ao chão da sala que fervia e de sentir seus ossos se esfarelando sob sua carne, Stanley Barker viu a figura ausente da tela maldita. Ele compreendeu que ele realmente leu, naqueles letreiros enganadores, o nome do lar daquela criatura maldita. Mas foi tarde demais, sua alma já estava na fila para a colheita maldita.
A Galeria Hades estava ansiosa para obter mais uma alma em sua coleção infernal.
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HADES
Short StoryCAPA: @BrinaBoyle Stanley, é um magnata presidente de um grande Banco e, apreciador de obras com temas satânicos, é misteriosamente atraído para uma Galeria de Arte, onde um tesouro lhe aguarda, oculto na penumbra de eras passadas. Mas, talvez o pre...