Quando Yaqub chegou do Líbano, o pai foi buscá-lo no Rio de Janeiro. O cais da praça Mauá estava apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que
regressavam da Itália. Bandeiras brasileiras enfeitavam o balcão e as janelas
dos apartamentos e casas, rojões espocavam no céu, e para onde o pai olhava
havia sinais de vitória. Ele avistou o filho no portaló do navio que acabara de
chegar de Marselha. Não era mais o menino, mas o rapaz que passara cinco
dos seus dezoito anos no sul do Líbano. O andar era o mesmo: passos rápidos e
firmes que davam ao corpo um senso de equilíbrio e uma rigidez impensável
no andar do outro filho, o Caçula. Yaqub havia esticado alguns palmos. E à medida que se aproximava do cais, o pai comparava o corpo do filho recém-chegado com a imagem que
construíra durante os anos da separação. Ele carregava um farnel de lona
cinza, surrado, e debaixo do boné verde os olhos graúdos arregalaram com os
vivas e a choradeira dos militares da Força Expedicionária Brasileira. Halim acenou com as duas mãos, mas o filho demorou a reconhecer aquele homem vestido de branco, um pouco mais baixo do que ele. Por pouco
não esquecera o rosto do pai, os olhos do pai e o pai por inteiro. Apreensivo, ele
se aproximou do moço, os dois se entreolharam e ele, o filho, perguntou:
"Baba?". E depois os quatro beijos no rosto, o abraço demorado, as saudações
em árabe. Saíram da praça Mauá abraçados e foram até a Cinelândia. O filho
falou da viagem e o pai lamentou a penúria em Manaus, a penúria e a fome
durante os anos da guerra. Na Cinelândia sentaram-se à mesa de um bar, e no
meio do burburinho Yaqub abriu o farnel e tirou um embrulho, e o pai viu
pães embolorados e uma caixa de figos secos. Só isso trouxera do Líbano?
Nenhuma carta? Nenhum presente? Não, não havia mais nada no farnel,nem roupa nem presente, nada! Então Yaqub explicou em árabe que o tio, o
irmão do pai, não queria que ele voltasse para o Brasil. Calou. Halim baixou a cabeça, pensou em falar do outro filho, hesitou. Disse: "Tua mãe...", e também calou. Viu o rosto crispado de Yaqub, viu o filho
levantar-se, aperreado, arriar a calça e mijar de frente para a parede do bar em
plena Cinelândia. Mijou durante uns minutos, o rosto agora aliviado,
indiferente às gargalhadas dos que passavam por ali. Halim ainda gritou, "Não,
tu não deves fazer isso...", mas o filho não entendeu ou fingiu não entender o
pedido do pai. Ele teve que engolir o vexame. Esse e outros, de Yaqub e também do outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera poucos minutos depois. O
que mais preocupava Halim era a separação dos gêmeos, "porque nunca se
sabe como vão reagir depois...". Ele nunca deixou de pensar no reencontro dos
filhos, no convívio após a longa separação. Desde o dia da partida, Zana não
parou de repetir: "Meu filho vai voltar um matuto, um pastor, um ra'í. Vai
esquecer o português e não vai pisar em escola porque não tem escola lá na
aldeia da tua família". Aconteceu um ano antes da Segunda Guerra, quando os gêmeos completaram treze anos de idade. Halim queria mandar os dois para o sul do
Líbano. Zana relutou, e conseguiu persuadir o marido a mandar apenas
Yaqub. Durante anos Omar foi tratado como filho único, o único menino. No centro do Rio, Halim comprou roupas e um par de sapatos para Yaqub. Na viagem de volta a Manaus, fez um longo sermão sobre educação
doméstica: que não se deve mijar na rua, nem comer como uma anta, nem
cuspir no chão, e Yaqub, sim, Baba, a cabeça baixa, vomitando quando o
bimotor chacoalhava, os olhos fundos no rosto pálido, a expressão de pânico
toda vez que o avião decolava ou aterrissava nas seis escalas entre o Rio de
Janeiro e Manaus. Zana os esperava no aeroporto desde o começo da tarde. Ela estacionou o Land Rover verde, foi até a varanda e ficou olhando para o leste. Quando viu
o bimotor prateado aproximar-se da cabeceira da pista, desceu correndo,
atravessou a sala de desembarque, subornou um funcionário, caminhou
altiva até o avião, subiu a escada e irrompeu na cabine. Levava um buquê de
helicônias que deixou cair ao abraçar o filho ainda lívido de pavor, dizendo-
lhe, "Meu querido, meus olhos, minha vida", chorando, "Por que tanta
demora? O que fizeram contigo?", beijando-lhe o rosto, o pescoço, a cabeça,
sob o olhar incrédulo de tripulantes e passageiros, até que Halim disse, "Chega! Agora vamos descer, o Yaqub não parou de provocar, só faltou pôr as
tripas para fora". Mas ela não cessou os afagos, e saiu do avião abraçada ao
filho, e assim desceu a escada e caminhou até a sala de desembarque,
radiante, cheia de si, como se enfim tivesse reconquistado uma parte de sua
própria vida: o gêmeo que se ausentara por capricho ou teimosia de Halim. E
ela permitira por alguma razão incompreensível, por alguma coisa que parecia
insensatez ou paixão, devoção cega e irrefreável, ou tudo isso junto, e que ela
não quis ou nunca soube nomear. Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto quanto o outro filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e
graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava
um suspiro depois do riso, igualzinho ao outro. A distância não dissipara certos
tiques e atitudes comuns, mas a separação fizera Yaqub esquecer certas
palavras da língua portuguesa. Ele falava pouco, pronunciando monossílabos
ou frases curtas; calava quando podia, e, às vezes, quando não devia. Zana logo percebeu. Via o filho sorrir, suspirar e evitar as palavras, como se um silêncio paralisante o envolvesse. No caminho do aeroporto para casa, Yaqub reconheceu um pedaço da infância vivida em Manaus, se emocionou com a visão dos barcos coloridos,
atracados às margens dos igarapés por onde ele, o irmão e o pai haviam
navegado numa canoa coberta de palha. Yaqub olhou para o pai e apenas
balbuciou sons embaralhados. "O que aconteceu?", perguntou Zana. "Arrancaram a tua língua?"
"La, não, mama", disse ele, sem tirar os olhos da paisagem da infância, de alguma coisa interrompida antes do tempo, bruscamente. Os barcos, a correria na praia quando o rio secava, os passeios até o Careiro, no outro lado do rio Negro, de onde voltavam com cestas cheias de
frutas e peixes. Ele e o irmão entravam correndo na casa, ziguezagueavam
pelo quintal, caçavam calangos com uma baladeira. Quando chovia, os dois
trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se
arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da árvore, escondido
na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo, temendo
perder o equilíbrio. A voz de Omar, o Caçula: "Daqui de cima eu posso
enxergar tudo, sobe, sobe". Yaqub não se mexia, nem olhava para o alto:
descia com gestos meticulosos e esperava o irmão, sempre o esperava, não
gostava de ser repreendido sozinho. Detestava os ralhos de Zana quando
fugiam nas manhãs de chuva torrencial e o Caçula, só de calção, enlameado, se atirava no igarapé perto do presídio. Eles viam as mãos e a silhueta dos
detentos, e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem eram os
insultados: se os detentos ou os curumins que ajudavam as mães, tias ou avós
a retirar as roupas de um trançado de fios nas estacas das palafitas. Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem. Sentia raiva, de si próprio e do outro, quando via o braço do Caçula enroscado
no pescoço de um curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. Sentia
raiva de sua impotência e tremia de medo, acovardado, ao ver o Caçula
desafiar três ou quatro moleques parrudos, aguentar o cerco e os socos deles e
revidar com fúria e palavrões. Yaqub se escondia, mas não deixava de admirar
a coragem de Omar. Queria brigar como ele, sentir o rosto inchado, o gosto de
sangue na boca, a ardência no lábio estriado, na testa e na cabeça cheia de
calombos; queria correr descalço, sem medo de queimar os pés nas ruas de
macadame aquecidas pelo sol forte da tarde, e saltar para pegar a linha ou a
rabiola de um papagaio que planava lentamente, em círculos, solto no espaço.
O Caçula tomava impulso, pulava, rodopiava no ar como um acrobata e caía
de pé, soltando um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas. Yaqub
recuava ao ver as mãos do irmão cheias de sangue, cortadas pelo vidro do
cerol. Yaqub não era esse acrobata, não lambuzava as mãos com cerol, mas bem que gostava de brincar e pular nos bailes de Carnaval no sobrado de
Sultana Benemou, onde o Caçula ficava para a festa dos adultos e varava a
noite com os foliões. Eles tinham treze anos, e, para Yaqub, era como se a
infância tivesse terminado no último baile no casarão dos Benemou. Naquela
noite ele nem sonhava que dois meses depois ia se separar dos pais, do país e
dessa paisagem que agora, sentado no banco da frente do Land Rover,
reanimava o rosto dele. O baile dos jovens havia começado antes do anoitecer. Às dez horas os adultos entraram fantasiados na sala do casarão, cantando, pulando e
enxotando a garotada. Yaqub quis ficar até meia-noite, porque uma sobrinha
dos Reinoso, a menina aloirada, corpo alto de moça, também ia brincar até a
manhã da Quarta-Feira de Cinzas. Seria a primeira noite de Lívia na festa dos
adultos, a primeira noite que ele, Yaqub, viu-a com os lábios pintados, os olhos
contornados por linhas pretas, as tranças salpicadas de lantejoulas que
brilhavam nos ombros bronzeados. Queria ficar para pular abraçado com ela,
sentir-se quase adulto como ela. Já pensava em se aproximar de Lívia quando
a voz de Zana ordenou: "Leva tua irmã para casa. Podes voltar depois". Ele obedeceu. Acompanhou Rânia até o quarto, esperou-a dormir e voltou
correndo ao casarão dos Benemou. A sala fervilhava de foliões, e no meio das
tantas cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e
logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhantes ao dele,
pertinho do rosto que admirava. Lívia e o irmão dançavam num canto da sala. Dançavam quietos, enroscados, movidos por um ritmo só deles, que não era carnavalesco. Quando
os foliões esbarravam no par, os dois rostos se encontravam e, aí sim, davam
gargalhadas de Carnaval. Yaqub ensombreceu. Não teve coragem de ir falar
com ela. Odiou o baile, "odiei as músicas daquela noite, os mascarados, e odiei
a noite", contou Yaqub a Domingas na tarde da Quarta-Feira de Cinzas. Foi
uma noite insone. Ele fingia dormir quando o irmão entrou no quarto dele
naquela madrugada, quando o som das marchinhas carnavalescas e a gritaria
dos bêbados enchiam a atmosfera de Manaus. De olhos fechados, sentiu o
cheiro de lança-perfume e suor, o odor de dois corpos enlaçados, e percebeu
que o irmão estava sentado no assoalho e olhava para ele. Yaqub permaneceu
quieto, apreensivo, derrotado. Notou o irmão sair lentamente do quarto, o
cabelo e a camisa cheios de confete e serpentina, o rosto sorridente e cheio de
prazer. Foi o seu último baile. Quer dizer, a última manhã em que viu o irmão chegar de uma noitada de arromba. Não entendia por que Zana não ralhava
com o Caçula, e não entendeu por que ele, e não o irmão, viajou para o Líbano
dois meses depois. Agora o Land Rover contornava a praça Nossa Senhora dos Remédios, aproximava-se da casa e ele não queria se lembrar do dia da partida. Sozinho,
aos cuidados de uma família de amigos que ia viajar para o Líbano. Sim, por
que ele e não o Caçula, perguntava a si mesmo, e as mangueiras e oitizeiros
sombreando a calçada, e essas nuvens imensas, inertes como uma pintura em
fundo azulado, o cheiro da rua da infância, dos quintais, da umidade
amazônica, a visão dos vizinhos debruçados nas janelas e a mãe acariciando-
lhe a nuca, a voz dócil dizendo-lhe: "Chegamos querido, a nossa casa...". Zana desceu do jipe e procurou em vão Omar. Rânia estava no alpendre, alinhada, perfumada. "Ele chegou? Meu irmão chegou?" Correu para a porta, de onde avistou um rapaz tímido, mais alto que o pai, segurando o farnel surrado e
agora olhando para ela com o olhar de alguém que vê pela primeira vez a
moça, e não a menina mirrada que abraçara no cais do Manaus Harbour. Ele
não sabia o que dizer: largou o farnel e abriu os braços para enlaçar o corpo
esbelto, alongado por uma pose altiva, o queixo levemente empinado, que lhe
dava um ar autoconfiante e talvez antipático ou alheio. Rânia hipnotizava-se
com a presença do irmão: uma réplica quase perfeita do outro, sem ser o
outro. Ela o observava, queria notar alguma coisa que o diferenciasse do
Caçula. Olhou-o de perto, de muito perto, de vários ângulos; percebeu que a
maior diferença estava no silêncio do irmão recém-chegado. No entanto, ela
ouviu a voz agora grave perguntar "Onde está Domingas?", e viu o irmão
caminhar até o quintal e abraçar a mulher que o esperava. Entraram no
quartinho onde Domingas e Yaqub haviam brincado. Ele observou os
desenhos de sua infância colados na parede: as casas, os edifícios e as pontes
coloridas, e viu o lápis de sua primeira caligrafia e o caderno amarelado que
Domingas guardara e agora lhe entregava como se ela fosse sua mãe e não a
empregada. Yaqub demorou no quintal, depois visitou cada aposento, reconheceu os móveis e objetos, se emocionou ao entrar sozinho no quarto onde dormira. Na
parede viu uma fotografia: ele e o irmão sentados no tronco de uma árvore
que cruzava um igarapé; ambos riam: o Caçula, com escárnio, os braços soltos
no ar; Yaqub, um riso contido, as mãos agarradas no tronco e o olhar
apreensivo nas águas escuras. De quando era aquela foto? Tinha sido tirada
um pouco antes ou talvez um pouco depois do último baile de Carnaval no
casarão dos Benemou. No plano de fundo da imagem, na margem do igarapé,
os vizinhos, cujos rostos pareciam tão borrados na foto quanto na memória de
Yaqub. Sobre a escrivaninha viu outra fotografia: o irmão sentado numa
bicicleta, o boné inclinado na cabeça, as botas lustradas, um relógio no pulso.
Yaqub se aproximou, mirou de perto a fotografia para enxergar as feições do
irmão, o olhar do irmão, e se assustou ao ouvir uma voz: "O Omar vai chegar
de noitinha, ele prometeu jantar conosco". Era a voz de Zana; ela havia seguido os passos de Yaqub e queria mostrar-lhe o lençol e as fronhas em que bordara o nome dele. Desde que
soubera de sua volta, Zana repetia todos os dias: "Meu menino vai dormir com
as minhas letras, com a minha caligrafia". Ela dizia isso na presença do
Caçula, que, enciumado, perguntava: "Quando ele vai chegar? Por que ele
ficou tanto tempo no Líbano?". Zana não lhe respondia, talvez porque também para ela era inexplicável o fato de Yaqub ter passado tantos anos
longe dela. Ela havia mobiliado o quarto de Yaqub com uma cadeira austríaca, um guarda-roupa de aguano e uma estante com os dezoito volumes de uma
enciclopédia que Halim comprara de um magistrado aposentado. Um vaso
com tajás enfeitava um canto do quarto perto da janela aberta para a rua. Apoiado no parapeito, Yaqub olhava os passantes que subiam a rua na direção da praça dos Remédios. Por ali circulavam carroças, um e outro carro,
cascalheiros tocando triângulos de ferro; na calçada, cadeiras em meio círculo
esperavam os moradores para a conversa do anoitecer; no batente das janelas,
tocos de velas iluminariam as noites da cidade sem luz. Fora assim durante os
anos da guerra: Manaus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante
dos açougues e empórios, disputando um naco de carne, um pacote de arroz,
feijão, sal ou café. Havia racionamento de energia, e um ovo valia ouro. Zana
e Domingas acordavam de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a
patroa ia ao Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas passavam a ferro,
preparavam a massa do pão, cozinhavam. Quando tinha sorte, Halim
comprava carne enlatada e farinha de trigo que os aviões norte-americanos
traziam para a Amazônia. Às vezes, trocava víveres por tecido encalhado:
morim ou algodão esgarçado, renda encardida, essas coisas. Conversavam em volta da mesa sobre isso: os anos da guerra, os acampamentos miseráveis nos subúrbios de Manaus, onde se amontoavam
ex-seringueiros. Yaqub, calado, prestava atenção, tamborilava na madeira,
assentindo com a cabeça, feliz por entender as palavras, as frases, as histórias
contadas pela mãe, pelo pai, uma e outra observação de Rânia. Yaqub
entendia. As palavras, a sintaxe, a melodia da língua, tudo parecia ressurgir.
Ele bebia, comia e escutava, atento; entregava-se à reconciliação com a
família, mas certas palavras em português lhe faltavam. E sentiu a falta
quando os vizinhos vieram vê-lo. Yaqub foi beijado por Sultana, por Talib e
suas duas filhas, por Estelita Reinoso. Alguém disse que ele era mais altivo que
o irmão. Zana discordou: "Nada disso, são iguais, são gêmeos, têm o mesmo
corpo e o mesmo coração". Ele sorriu, e dessa vez a hesitação da fala, o
esquecimento da língua e o receio de dizer uma asneira foram providenciais.
Desembrulhou os presentes, viu as roupas vistosas, o cinturão de couro, a
carteira com as iniciais prateadas. Manuseou a carteira e a enfiou no bolso da
calça que Halim lhe comprara no Rio. "Coitado! Ya haram ash-shum!", lamentou Zana. "Meu filho foi maltratado naquela aldeia." Ela olhou para o marido:
"Imagino como ele desembarcou no Rio. Querem ver a bagagem que trouxe? Uma trouxa velha e fedorenta! Não é um absurdo?" "Vamos mudar de assunto", pediu Halim. "Sacos e roupa velha são coisas que a gente esquece." Mudaram de assunto e também de expressão: o rosto de Zana se iluminou ao ouvir um assobio prolongado - uma senha, o sinal da chegada do
outro filho. Era quase meia-noite quando o Caçula entrou na sala. Vestia
calça branca de linho e camisa azul, manchada de suor no peito e nas axilas.
Omar se dirigiu à mãe, abriu os braços para ela, como se fosse ele o filho
ausente, e ela o recebeu com uma efusão que parecia contrariar a
homenagem a Yaqub. Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço
do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúme em
Yaqub e inquietação em Halim. "Obrigado pela festa", disse ele, com um quê de cinismo na voz. "Sobrou comida para mim?" "Meu Omar é brincalhão", Zana tentou corrigir, beijando os olhos do filho. "Yaqub, vem cá, vem abraçar o teu irmão." Os dois se olharam. Yaqub tomou a iniciativa: levantou, sorriu sem vontade e na face esquerda a cicatriz alterou-lhe a expressão. Não se
abraçaram. Do cabelo cacheado de Yaqub despontava uma pequena mecha
cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente os distinguia era a
cicatriz pálida e em meia-lua na face esquerda de Yaqub. Os dois irmãos se
encararam. Yaqub avançou um passo, Halim disfarçou, falou do cansaço da
viagem, dos anos de separação, mas de agora em diante a vida ia melhorar.
Tudo melhora depois de uma guerra. Talib concordou, Sultana e Estelita propuseram um brinde ao fim da guerra e à chegada de Yaqub. Nenhum dos dois brindou: os cristais tilintando
e uma euforia contida não animaram os gêmeos. Yaqub apenas estendeu a
mão direita e cumprimentou o irmão. Pouco falaram, e isso era tanto mais
estranho porque, juntos, pareciam a mesma pessoa. Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no rosto de Yaqub. Ela pensava que um ciuminho reles tivesse sido a causa da agressão. Vivia
atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade
de todos. Domingas tinha essa liberdade, porque as refeições da família e o
brilho da casa dependiam dela. A minha história também depende dela, Domingas.
Era uma tarde nublada de sábado, logo depois do Carnaval. As crianças da rua se alinhavam para passar a tarde na casa dos Reinoso, onde se
aguardava a chegada de um cinematógrafo ambulante. No último sábado de
cada mês, Estelita avisava as mães da vizinhança que haveria uma sessão de
cinema em sua casa. Era um acontecimento e tanto. As crianças almoçavam
cedo, vestiam a melhor roupa, se perfumavam e saíam de casa sonhando com
as imagens que veriam na parede branca do porão da casa de Estelita. Yaqub e o Caçula usavam um fato de linho e uma gravatinha- borboleta; saíam iguais, com o mesmo penteado e o mesmo aroma de
essências do Pará borrifado na roupa. Domingas, de braços dados com os dois,
também se arrumava para acompanhar os gêmeos. O Caçula se desgarrava,
corria, era o primeiro a beijar o rosto de Estelita e entregar-lhe um buquê de
flores. Na sala, Zahia e Nahda Talib conversavam com Lívia, a meninona
aloirada, sobrinha dos Reinoso; dois curumins de uma família que morava no
Seringal Mirim serviam guaraná e biscoitos de castanha aos convidados.
Esperavam o cinematógrafo, e cada minuto passava com lentidão porque
estavam ansiosos para ver a parede branca do porão cheia de imagens,
ansiosos por uma história de aventura ou de amor que tornava a tarde do
sábado a mais desejada de todas as tardes. Então o tempo fechou com nuvens
baixas e pesadas e Abelardo Reinoso decidiu ligar o gerador. Na sala iluminada
um batalhão de soldadinhos foi ordenado sobre a mesa, e selos de outros países
passaram de mão em mão, como diminutas vinhetas de paisagens, rostos e
bandeiras longínquas. A meninona loira apreciava um selo raro, e seus braços
roçavam os dos gêmeos. Alisava o selo com o indicador, os outros meninos se
entretinham com o batalhão verde, e ela parecia atraída pelo aroma que
exalava dos gêmeos. Lívia sorria para um, depois para o outro, e dessa vez foi o
Caçula quem ficou enciumado, disse Domingas. O Caçula fez cara feia, tirou
a gravatinha-borboleta, desabotoou a gola e arregaçou as mangas da camisa.
Bufou, se esforçou para ser dócil. Balbuciou: "Vamos dar uma volta no
quintal?", e ela, olhando o selo: "Mas vai chover, Omar. Escuta só as
trovoadas". Então ela tirou um selo do álbum e ofereceu-o a Yaqub. O Caçula
detestou isso, disse Domingas; detestou ver os dedos do irmão brincarem de
minhoca louca com os dedos de Lívia. Não era sonsa, era uma mocinha
apresentada, que sorria sem malícia e atraía os gêmeos e todos os meninos da
vizinhança quando trepava na mangueira, e em redor do tronco um enxame
de moleques erguia a cabeça e seguia com o olhar a ondulação do short
vermelho. Mas ela gostava mesmo era dos gêmeos; olhava dengosa para os
dois; às vezes, quando se distraía, olhava para Yaqub como se visse nele
alguma coisa que o outro não tinha. Yaqub, meio acanhado, percebia? O
Caçula pensava que depois do baile dos Benemou a Lívia ia cheirar e morder o
gogó dele e desfilar com ele nas matinês do Guarany e do Odeon. Já tinha
prometido roubar o Land Rover dos pais e passear com ela até as cachoeiras do
Tarumã. Zana desconfiou, escondeu a chave do jipe, cortou a curica do
Caçula. Brincavam com os dedos, e Omar já tinha se afastado dos dois quando
o homem do cinematógrafo chegou. Trazia na maleta de couro o projetor e o
rolo do filme. Era alto, de gestos calmos, o rosto magro dividido por um
bigodaço: "Trouxe a grande diversão, o grande sonho, curuminzada". Selos, soldados e canhões foram esquecidos. O chorinho da vitrola, apagado. Um relógio antigo bateu quatro vezes. Uma correria pela escada de
madeira estremeceu a casa e em pouco tempo o porão foi povoado de gritos, as
cadeiras da primeira fila foram disputadas. Yaqub reservou uma cadeira para
Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar esse gesto polido. Da escuridão
surgiram cenas em preto e branco e o ruído monótono do projetor aumentava
o silêncio da tarde. Nesse momento Domingas despediu-se dos Reinoso. A
magia no porão escuro demorou uns vinte minutos. Uma pane no gerador
apagou as imagens, alguém abriu uma janela e a plateia viu os lábios de Lívia
grudados no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas no chão e o
estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida e furiosa do
Caçula. O silêncio durou uns segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao
olhar o rosto rasgado de Yaqub. Os Reinoso desceram ao porão, a voz de
Abelardo abafou o alvoroço. O Caçula, apoiado na parede branca, ofegava, o
caco de vidro escuro na mão direita, o olhar aceso no rosto ensanguentado do
irmão. Estelita subiu com o ferido e chamou um dos curumins: corre até a casa da Zana, chama a Domingas, mas não fala nada sobre isso. A cicatriz já começava a crescer no corpo de Yaqub. A cicatriz, a dor e algum sentimento que ele não revelava e talvez desconhecesse. Não
tornaram a falar um com o outro. Zana culpava Halim pela falta de mão firme
na educação dos gêmeos. Ele discordava: "Nada disso, tu tratas o Omar como
se ele fosse nosso único filho".
Ela chorou quando viu o rosto de Yaqub, disse Domingas. Beijava-lhe a face direita e chorava, aflita, ao ver a outra face inchada, costurada em
semicírculo. Treze pontos. O fio preto da costura parecia uma pata de
caranguejeira. Yaqub, calado, matutava. Evitava falar com o outro.
Desprezava-o? Remoía, mudo, a humilhação? "Cara de lacrau", diziam-lhe na escola. "Bochecha de foice." Os apelidos, muitos, todas as manhãs. Ele engolia os insultos, não reagia. Os pais
tiveram de conviver com um filho silencioso. Temiam a reação de Yaqub,
temiam o pior: a violência dentro de casa. Então Halim decidiu: a viagem, a
separação. A distância que promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que os
engendrou. Yaqub partiu para o Líbano com os amigos do pai e regressou a Manaus cinco anos depois. Sozinho. "Um rude, um pastor, um ra'í. Olha como o meu
filho come!", lamentava-se Zana. Ela tentou esquecer a cicatriz do filho, mas a distância trazia para mais perto ainda o rosto de Yaqub. As cartas que ela escreveu! Dezenas? Centenas, talvez. Cinco anos de palavras. Nenhuma resposta. As raras notícias sobre a vida de Yaqub eram transmitidas por amigos ou
conhecidos que voltavam do Líbano. Um primo de Talib que visitara a família
de Halim avistara Yaqub no porão de uma casa. Estava sozinho e lia um livro
sentado no chão, onde havia um monte de figos secos. O rapaz tentou falar
com ele, em árabe e português, mas Yaqub o ignorou. Zana passou a noite
culpando Halim, e ameaçou viajar para o Líbano durante a guerra. Então ele
escreveu aos parentes e mandou o dinheiro da passagem de Yaqub. Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às
vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas,
até o lance final. Nos primeiros meses depois da chegada de Yaqub, Zana tentou zelar por uma atenção equilibrada aos filhos. Rânia significava muito mais do que eu,
porém menos do que os gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinho
construído no quintal, fora dos limites da casa. Rânia dormia num pequeno
aposento, só que no andar superior. Os gêmeos dormiam em quartos
semelhantes e contíguos, com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada,as mesmas moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres. Era um
privilégio; era também um transtorno. Os dois saíam cedo para o colégio; quem, de longe, os olhasse caminhar, juntos, vestindo a farda engomada por Domingas, teria a impressão de ver os
dois irmãos conciliados para sempre. Yaqub, que perdera alguns anos de escola
no Líbano, era um varapau numa sala de baixotes. Zana temia que ele mijasse
no pátio do colégio, comesse com as mãos no refeitório ou matasse um cabrito
e o trouxesse para casa. Nada disso aconteceu. Era um tímido, e talvez por isso
passasse por covarde. Tinha vergonha de falar: trocava o pê pelo bê (Não bosso,
babai! Buxa vida!), e era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o
tinham como um rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado. Mas era também
alvo de olhares femininos. E olhar Yaqub sabia. De frente, como um
destemido, arqueando a sobrancelha esquerda: um tímido que podia passar por
conquistador. Sorria e dava uma risada gostosa no momento certo: o
momento em que as meninas das praças, dos bailes e dos arraiais suspiravam.
Na casa, Zana foi a primeira a notar esse pendor do filho para o galanteio.
Domingas também se deixava encantar por aquele olhar. Dizia: "Esse gêmeo
tem olhão de boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio". Não,
ele não arrastou ninguém para a cidade encantada. Esse encantamento dos
olhos deixava expectativas e promessas no ar. Depois a mãe tinha que aturar
as cunhantãs que assediavam seu filho. Enviavam bilhetes e mensagens pela
manicure. A mãe lia as palavras das oferecidas, lia com um prazer quase
cruel, sabendo que o seu Yaqub não sucumbiria aos versos de amor copiados
de poetas românticos. Ali, trancado no quarto, ele varava noites estudando a
gramática portuguesa; repetia mil vezes as palavras mal pronunciadas:
atonito, em vez de atônito. A acentuação tônica... um drama e tanto para
Yaqub. Mas ele foi aprendendo, soletrando, cantando as palavras, até que os
sons dos nossos peixes, plantas e frutas, todo esse tupi esquecido não embolava
mais na sua boca. Mesmo assim, nunca foi tagarela. Era o mais silencioso da
casa e da rua, reticente ao extremo. Nesse gêmeo lacônico, carente de prosa,
crescia um matemático. O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe
no poder de abstrair, calcular, operar com números. "E para isso", dizia o pai, orgulhoso, "não é preciso língua, só cabeça. Yaqub tem de sobra o que falta no outro." Omar ouvia essa frase e tornou a ouvi-la anos depois, quando Yaqub, em São Paulo, comunicou à família que havia ingressado na Escola
Politécnica (em "brimeiro lugar, babai", escreveu ele, brincando). Zana sorriu
triunfante, enquanto Halim repetia: "Eu não disse? Só cabeça, só
inteligência, e isso o nosso Yaqub tem de sobra". O matemático, e também o rapaz altivo e circunspecto que não dava bola para ninguém; o enxadrista que no sexto lance decidia a partida e
assobiava sem vontade um soprinho de passarinho rouco, antevendo o rei
acuado. Derrotava o adversário emitindo esse assobio meio irritante, anúncio
do inevitável xeque-mate. Dias e noites no quarto, sem dar um mergulho nos
igarapés, nem mesmo aos domingos, quando os manauaras saem ao sol e a
cidade se concilia com o rio Negro. Zana preocupava-se com esse bicho
escondido. Por que não ia aos bailes? "Olha só, Halim, esse teu filho vive
enfurnado na toca. Parece um amarelão mofando na vida." O pai tampouco
entendia por que ele renunciava à juventude, ao barulho festivo e às
serenatas que povoavam de sons as noites de Manaus. Que noites, que nada! Ele desprezava, altivo em sua solidão, os bailes carnavalescos, ainda mais animados nos anos do pós-guerra, com os corsos e
suas colombinas que saíam da praça da Saudade e desciam a avenida num
frenesi louco até o Mercado Municipal; desprezava as festas juninas, a dança
do tipiti, os campeonatos de remo, os bailes a bordo dos navios italianos e os
jogos de futebol no Parque Amazonense. Trancava-se no quarto, o egoísta
radical, e vivia o mundo dele, e de ninguém mais. O pastor, o aldeão apavorado
na cidade? Talvez isso, ou pouco mais: o montanhês rústico que urdia um
futuro triunfante. Esse Yaqub, que embranquecia feito osga em parede úmida, compensava a ausência dos gozos do sol e do corpo aguçando a capacidade de
calcular, de equacionar. No colégio dos padres ele encontrava sempre, antes
de qualquer um, o valor de um z, y ou x. Surpreendia os professores: a chave
da mais complexa equação se armava na cabeça de Yaqub, para quem o giz e
o quadro-negro eram inúteis. O outro, o Caçula, exagerava as audácias juvenis: gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite,
fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés,
do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do
último sereno, voltava para casa. E lá estava Zana, impávida na rede
vermelha, no rosto a serenidade fingida, no fundo atormentada, entristecida
por passar mais uma noite sem o filho. Omar mal percebia o vulto arqueado
sob o alpendre. Ia direto ao banheiro, provocava em golfadas a bebedeira da
noite, cambaleava ao tentar subir a escada; às vezes caía, inteiro, o corpanzil
suado, esquecido da alquimia da noite. Então ela saía da rede, arrastava o
corpo do filho até o alpendre e acordava Domingas: as duas o desnudavam,
passavam-lhe álcool no corpo e o acomodavam na rede. Omar dormia até
meio-dia. O rosto inchado, engelhado pela ressaca, rosnava pedindo água
gelada, e lá ia Domingas com a bilha: derramava-lhe na boca aberta o líquido
que ele primeiro bochechava e depois sorvia como uma onça sedenta. Halim
se incomodava com isso, detestava sentir o cheiro do filho, que empestava o
lugar sagrado das refeições. O pai rondava a sala, caminhava em diagonal, o
olhar de relance na rede vermelha sob o alpendre. Num dia em que o Caçula passou a tarde toda de cueca deitado na rede, o pai o cutucou e disse, com a voz abafada: "Não tens vergonha de viver
assim? Vais passar a vida nessa rede imunda, com essa cara?". Halim
preparava uma reação, uma punição exemplar, mas a audácia do Caçula
crescia diante do pai. Não se vexava, parecia um filho sem culpa, livre da cruz.
Mas não da espada. Foi reprovado dois anos seguidos no colégio dos padres. O
pai o repreendia, dava o exemplo do outro filho, e Omar, mesmo calado,
parecia dizer: Dane-se! Danem-se todos, vivo a minha vida como quero. Foi o que ele gritou ao ser expulso do colégio. Gritou várias vezes na presença do pai, desafiando-o, rasgando a farda azul, a voz impertinente
dizendo: "Acertei em cheio o professor de matemática, o mestre do teu filho
querido, o que só tem cabeça". Zana e Halim foram convocados pelo diretor. Só ela foi, ela e Domingas, sua sombra servil. Soltou cobras e lagartos nas ventas do irmão diretor. O
senhor não sabia que o meu Omar adoeceu nos primeiros meses de vida? Por
pouco não morreu, irmão. Só Deus sabe... Deus e a mãe... Ela suava, entregue
ao êxtase de grande mãe protetora. Ouviram o sino bater seis vezes, o vozerio
e a agitação dos internos que se encaminhavam ao refeitório, e logo o silêncio,
e a voz dela, mais calma, menos injuriada, Quantos órfãos deste internato
comem à nossa custa, irmão? E as ceias de Natal, as quermesses, as roupas
que nós mandamos para as índias das missões? Domingas abanava o corpo da patroa. O irmão diretor suportou o desabafo, olhou para fora, para o anoitecer morno que começava a esconder o
imenso edifício dos salesianos. Cabras pastavam no quintal do colégio. Os
meninos órfãos, fardados, brincavam de gangorra, os corpos equilibrados
sumindo lentamente na noite. Ele abriu uma gaveta e entregou a Zana o
boletim de notas e uma cópia da ata de expulsão de Omar. Mostrou-lhe o
boletim médico sobre o estado de saúde do padre Bolislau, o professor de
matemática. Entendia a indignação de uma mãe ferida, entendia o ímpeto e a
imprudência de alguns jovens, mas dessa vez tinha sido inevitável. A única
expulsão nos últimos dez anos. Então o irmão diretor perguntou pelo outro, o
Yaqub. Continuaria no colégio? Ela gaguejou, confusa; seus olhos encontraram a gangorra agora vazia. O vão da janela escurecia, trazendo a noite para o interior da sala. Pensava no
pendor matemático do filho. O pastor, o rapaz rústico, o mágico dos números
que prometia ser o cérebro da família. Adiou a resposta e se levantou de
supetão, meio amarga, meio esperançosa, dizendo a Domingas uma frase que
no futuro repetiria tal uma prece: A esperança e a amargura... são parecidas. Na velhice que poderia ter sido menos melancólica, ela repetiu isso várias vezes a Domingas, sua escrava fiel, e a mim, sem me olhar, sem se
importar com a minha presença. Na verdade, para Zana eu só existia como
rastro dos filhos dela. O Caçula, expulso pelos padres, só encontrou abrigo numa escola de Manaus onde eu estudaria anos depois. O nome do colégio era pomposo -
Liceu Rui Barbosa, o Águia de Haia -, mas o apelido era bem menos
edificante: Galinheiro dos Vândalos. Hoje, penso que o apelido era inadequado e um tanto quanto preconceituoso. No Liceu, que não era totalmente desprezível, reinava a
liberdade de gestos ousados, a liberdade que faz estremecer convenções e
normas. A escória de Manaus o frequentava, e eu me deixei arrastar pela
torrente dos insensatos. Ninguém ali era "très raisonnable", como dizia o
mestre de francês, ele mesmo um excêntrico, um dândi deslocado na
província, recitador de simbolistas, palhaço da sua própria excentricidade. Não
ensinava a gramática, apenas recitava, barítono, as iluminações e as verdes
neves de seu adorado simbolista francês. Quem entendia essas imagens
fulgurantes? Todos eram atraídos pelo encanto da voz, e alguém, num átimo,
apreendia algo, sentia uma fulguração, desnorteava-se. Depois da "aula", na
calçada do Café Mocambo, ele fazia loas a Diana, a deusa de bronze, beleza
esbelta da praça das Acácias. Os elogios passavam da deusa a uma moça
fardada, toda ela índia, acobreada, assanhada de desejo; e os dois, juntos,
escapuliam do Mocambo e sumiam na noite da cidade sem luz. Foi esse mestre, Antenor Laval, o primeiro a saudar o recém-chegado
expulso do colégio dos padres. Ele, o Laval, regozijado, quis saber a causa da
expulsão sumária. O Caçula não escondia de ninguém a versão verdadeira: o
ato mais insubordinado, mais infame da história da catequese dos salesianos
na Amazônia, dizia ele. Contava a história para todo mundo. Contou-a diante
dos alunos do Galinheiro dos Vândalos, em voz alta, rindo ao dizer que o padre
polonês que o humilhou só podia tomar sopa, nunca mais ia mastigar comida.
Tinha acontecido na aula desse professor de matemática, o Bolislau, gigante
de tez vermelha, carnadura atlética, sempre de batina preta, sebenta de tanto
suor. Os olhos dele, de castigador que procura cobaia, focaram o Caçula.
Bolislau fez a pergunta dificílima, e, em resposta ao silêncio do aluno,
zombou. O Caçula se levantou, caminhou para o quadro-negro, parou
cabisbaixo diante do gigante Bolislau, deu-lhe um soco no queixo e um chute
no saco: um petardo tão violento que o pobre Bolislau se agachou, muito
corcunda, e rodopiou como um pião bambo. Não gritou: grunhiu. E na lividez
do rosto os olhos claros saltaram, molhados. Houve um tumulto na sala, risos
nervosos e risos de prazer, antes do silêncio, antes da chegada do irmão diretor
escoltado pela matilha de bedéis. O Caçula não esquecera a humilhação de um antigo castigo: ajoelhado ao pé de uma castanheira, desde o meio-dia até enxergar a primeira estrela no
céu. Ele fora caçoado pelos internos que cercavam a árvore, gritavam: "E se
chover, hein, valentão? E se cair um ouriço na tua cachola?". Insultos de
todos os lados, enquanto a figura do Bolislau avultava na visão do castigado,
deformada, odiada. Não choveu, mas no céu meio embaçado o primeiro brilho
demorou a aparecer. Por isso o Caçula, ainda excitado com a vingança, dissera
à mãe: "O Bolislau parrudão viu todas as estrelas do céu, mama. E nem tinha
céu. Não é um milagre? Ver uma constelação sem céu?". Ah, dessa vez Omar tinha ido longe demais. O episódio abalara o orgulho da mãe; o orgulho, não a fé. Ela considerou injusta a expulsão do
filho, mas Deus quis assim; afinal, até um ministro de Deus é vulnerável.
"Esse Bolislau errou", murmurava. "Meu filho só quis provar que é homem...
que mal há nisso?" Ela não queria ver no homem o agressor. No Galinheiro dos Vândalos não havia nenhuma exigência; os mestres não faziam chamada; uma
reprovação era uma façanha para poucos. Uma calça verde (um verde
qualquer) e uma camisa branca compunham a farda. A escória do Galinheiro
queria caçar um diploma, um pedaço de papel timbrado e assinado, com uma
tarja verde-amarela no canto superior.
Eu ia conseguir isso: o diploma do Galinheiro dos Vândalos, minha alforria. Sem que eu soubesse, Halim arrumava no meu quarto os manuais
que o Caçula desprezava e os muitos livros que Yaqub deixou ao viajar para
São Paulo, em janeiro de 1950. A partida de Yaqub foi providencial para mim. Além dos livros usados, ele deixou roupas velhas que anos depois me serviriam: três calças, várias
camisetas, duas camisas de gola puída, dois pares de sapato molambentos.
Quando ele viajou para São Paulo, eu tinha uns quatro anos de idade, mas a
roupa dele me esperou crescer e foi se ajustando ao meu corpo; as calças,
frouxas, pareciam sacos; e os sapatos, que mais tarde ficaram um pouco
apertados, entravam meio na marra nos pés: em parte por teimosia, e muito
por necessidade. O corpo é flexível. Inflexível foi o próprio Yaqub, que
enfrentou a resistência da mãe quando informou, no Natal de 1949, que ia
embora de Manaus. Disse isso à queima-roupa, como quem transforma em
ato uma ideia ruminada até a exaustão. Ninguém desconfiava de seus planos;
ele era evasivo nas respostas, esquivo até nas miudezas do cotidiano,
indiferente às diabruras do irmão, que soltava as rédeas no Galinheiro dos
Vândalos. Yaqub quase nada revelava sobre sua vida no sul do Líbano. Rânia, impaciente com o silêncio do irmão, com o pedaço de passado soterrado,
espicaçava-o com perguntas. Ele disfarçava. Ou dizia, lacônico: "Eu cuidava
do rebanho. Eu, o responsável pelo rebanho. Só isso". Quando Rânia insistia,
ele se tornava áspero, quase intratável, contrariando a candura de gestos e a
altivez e aderindo talvez à rudeza que cultivara na aldeia. No entanto, havia
acontecido alguma coisa naquele tempo de pastor. Talvez Halim soubesse,
mas ninguém, nem mesmo Zana, arrancou do filho esse segredo. Não, de
Yaqub não saía nada. Ele se retraía, encasulava-se no momento certo. Às
vezes, ao sair do casulo, surpreendia. Numa manhã de agosto de 1949, dia do aniversário dos gêmeos, o Caçula pediu dinheiro e uma bicicleta nova. Halim deu a bicicleta, sabendo
que a esposa, às escondidas, enchia de moedas os bolsos do filho. Yaqub recusou o dinheiro e a bicicleta. Pediu uma farda de gala para desfilar no dia da Independência. Era o seu último ano no colégio dos padres e
agora ia desfilar como espadachim. Já era garboso à paisana, imagine de farda branca com botões dourados, a ombreira enfeitada de estrelas, o cinturão de
couro com fecho prateado, a polaina, a luva branca, a espada reluzente que
ele empunhou diante do espelho da sala. A mãe, com o olhar maravilhado,
não sabia se mirava o filho ou a imagem dele. Talvez tivesse olhos para mirar
os dois, ou os três, pois do alpendre o Caçula espiava a cena sentado na
bicicleta, a cara meio alesada com um sorriso esquisito, vá saber se de despeito
ou irrisão. Ele ignorou o desfile e a Independência. O pai preferiu aproveitar
em casa a quietude do feriado. Insistiu para que Zana ficasse com ele, deixasse
o filho desfilar e marchar à vontade, mas ela queria a emoção de ver Yaqub
fardado no centro da avenida Eduardo Ribeiro. As mulheres da casa se assanharam para admirar o espadachim. Madrugaram na avenida para conseguir um lugar próximo à passagem das
bandas e pelotões. Levaram chapéu de palha, suco de abacaxi e uma sacola
cheia de tucumãs. Esperaram três horas sob o sol forte de setembro. Viram o
desfile do Batalhão de Caçadores do Exército, com seus blindados, bazucas e
baionetas e sua coreografia de onças-pintadas que esturravam sob o sol a pino.
Logo depois, o alto-falante anunciou o desfile do colégio dos padres. Ouviram o
rufar dos tambores e a harmonia dos metais num crescendo impressionante; a
banda, ainda invisível, emitia sons cada vez mais graves, estrondos
cadenciados ecoando no centro de Manaus. A multidão voltou-se para o topo
da avenida. Zana foi a primeira a divisar uma figura de branco, ostentando
uma lâmina reluzente. A figura avançou, devagar; os passos ritmados pela
cadência dividiam a avenida. O espadachim marchava à frente da banda e dos
oito pelotões, sozinho, recebendo aplausos e assobios. Jogavam-lhe açucenas-
brancas e flores do mato, que ele pisava sem pena, concentrado na cadência
da marcha, sem dar bola aos beijos e gracejos que vinham da mulherada, sem
nem mesmo piscar para Rânia. Ele não olhou para ninguém: desfilou com um
ar de filho único que não era. Yaqub, que pouco falava, deixou a aparência
falar por ele. A aparência e a imprensa: no dia seguinte um jornal publicou a
fotografia dele, com dois dedos de elogios. Durante meses Zana mostrou aos vizinhos o parágrafo a respeito do belo espadachim que ela havia parido. A espada cintilava na fotografia do jornal,
mas o tempo tratou de esmaecer o brilho metálico; no entanto, ficou a
imagem da arma com sua forma pontiaguda. As palavras elogiosas ao filho
bem que poderiam ter sumido, porque a mãe já as havia memorizado. Yaqub vinha ruminando a mudança para São Paulo. Foi o padre Bolislau quem o aconselhou a partir. "Vá embora de Manaus", dissera o professor de matemática. "Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo
teu irmão." Um bom mestre, um exímio pregador, o Bolislau. A mãe se desnorteou com a notícia da viagem de Yaqub. O pai, ao contrário, estimulou o filho a ir
morar em São Paulo, e ainda lhe prometeu uma parca mesada. Halim havia
melhorado de vida nos anos do pós-guerra. Vendia de tudo um pouco aos
moradores dos Educandos, um dos bairros mais populosos de Manaus, que
crescera muito com a chegada dos soldados da borracha, vindos dos rios mais
distantes da Amazônia. Com o fim da guerra, migraram para Manaus, onde
ergueram palafitas à beira dos igarapés, nos barrancos e nos clarões da cidade.
Manaus cresceu assim: no tumulto de quem chega primeiro. Desse tumulto
participava Halim, que vendia coisas antes de qualquer um. Vendia sem
prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência, que um dia ele me
garantiu ser um abismo. Não caiu nesse abismo, nem exigiu de si grandes
feitos. O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pôde evitar. O desfile com farda de gala fora a despedida de Yaqub: um pequeno espetáculo para a família e a cidade. No colégio dos padres prestaram-lhe uma
homenagem. Ganhou duas medalhas e dez minutos de elogios, e ainda foi
louvado por latinistas e matemáticos. Os religiosos sabiam que o ex-aluno
tinha futuro; naquela época, Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro
promissor. Quem não brilhou foi o outro, o Caçula, este, sim, um ser opaco
para padres e leigos, um lunático, alheio, inebriado com a atmosfera libertina
do Galinheiro dos Vândalos e da cidade. Omar faltou ao jantar de despedida do irmão. Chegou de madrugada, no fim da festa, quando só os da família, exaustos, se despediam da última noite
com Yaqub. Halim estava orgulhoso: o filho ia morar sozinho no outro lado do
país, mas ia precisar de dinheiro, não podia viajar assim... Por um momento a
voz de Yaqub ressoou na casa, uma voz já de homem, cheia de decisão,
dizendo "Não, baba, não vou precisar de nada... Dessa vez quem quis ir
embora fui eu". Halim abraçou o filho, chorou como havia chorado na
manhã em que Yaqub partira para o Líbano. Zana ainda insistiu: que lhe
mandaria uma mesada, que ele não ia ter tempo para trabalhar. "Teus
estudos...", acrescentou. "Nem um centavo", ele disse olhando para a mãe.
Então escutaram um ruído: Omar largara a bicicleta no quintal e armava a
rede vermelha. Não estava embriagado, demorou a pegar no sono e acordou
várias vezes com o sol que lhe esquentava a cabeça, irritava-o a ponto de
esmurrar o chão e a parede. Ele foi esquecido, por uma vez Omar dormira sem
a proteção das duas mulheres. Só se levantou depois do almoço, e não quis a
comida fria. Estava atento aos movimentos da mãe, que só tinha olhos para o
viajante. Halim ainda estava no quarto, Domingas arrumava na mala pacotes
de farinha e mantas de pirarucu seco. O Caçula não moveu uma palha:
continuou sentado à mesa, quieto diante do prato intocado, o olhar desviando
furtivamente para o rosto do irmão. Sofria com a decisão de Yaqub. Ele, o
Caçula, ia permanecer ali, ia reinar em casa, nas ruas, na cidade, mas o outro
tivera a coragem de partir. O destemido, o indômito na infância, estava
murcho, ferido. "Ele queria sair da sala, mas não conseguia", disse-me
Domingas. Não queria ver o irmão altivo, sereno, ouvindo a mãe pedir a Yaqub
que lhe escrevesse uma carta por semana, nem pensasse em deixá-la sem
notícias, preocupada aqui neste fim de mundo. Rânia rondava o viajante, e
ajoelhava-se para murmurar palavras que só ele escutava. Domingas não
tirava os olhos dele, e anos depois ela me contou que estava nervosa com a
viagem de Yaqub. Nem Zana podia impedi-lo de partir. As mãos agitadas de Domingas tiravam roupa da mala, tentavam encontrar um lugar para o peixe seco e a farinha. Zana vigiava essa
arrumação complicada, ia interferir quando a campainha tocou com
insistência e Omar se adiantou, correu para a porta da entrada e todos
ouviram palavras atropeladas. "Quem é, Omar?", perguntou a mãe, e logo depois um bate-boca, e o estalo da porta que se fecha e mais uma vez o som da campainha. "Por onde o Omar se meteu?", perguntou Zana. "Domingas, vai lá ver o que está acontecendo." Domingas fechou a mala e foi apressada até a porta. Depois a voz dela, alta, num tom petulante: "Ele vai viajar daqui a pouquinho."
Estalos de salto alto ecoaram no corredor. Zana lançou um olhar perplexo e depois desdenhoso para a mulher que entrava na sala procurando
Yaqub com os olhos. Ninguém ouvira falar dela desde aquela tarde em que o
Caçula rasgara o rosto do irmão no porão da casa dos Reinoso. Zana atribuía a
cicatriz no rosto de Yaqub ao demônio da sedução daquela meninona aloirada.
Mesmo quando o filho estava no Líbano, ela dizia a Domingas: "Não entendo
como a tal grandalhona pôde enfeitiçar meu filho". Às vezes refazia a frase e
dizia: "Não entendo como o meu Yaqub se deixou enfeitiçar por aquela osga". "Parecia a mesma meninona, só que naquela visita a Lívia mostrava uma parte dos peitos e das coxas", disse-me Domingas. O resto do corpo de Lívia foi esquadrinhado pelos olhos arregalados de Zana, que lhe perguntou com uma voz maliciosa: "A querida veio se despedir
do meu galã?". Lívia se afastou e saiu da sala, atraindo Yaqub para o quintal. Sussurraram com muitos risinhos e logo sumiram no matagal dos fundos.
Demoraram o tempo da sobremesa, do café espesso e da sesta. Zana, inquieta,
fez um sinal a Domingas, que os encontrou perto da cerca. Estavam
espichados no mato, e Yaqub acariciava o ventre e os seios da mulher, adiando
a despedida. Domingas ficou calada, ofegante; agachou-se, balançou as folhas
e torceu com raiva os galhos da fruta-pão. Observou a cena, boquiaberta, e se
retirou com a boca seca, com sede daquela água. Lívia não apareceu, deve ter saído pela ruela dos fundos. Depois Yaqub entrou sozinho na sala, o pescoço com arranhões e marcas de mordidas, a
expressão ainda incendiada. Viajou assim mesmo: a roupa amarrotada, o rosto úmido, o cabelo aninhando talos, folhinhas e fios de cabelo amarelados. Viajou calado,
deixando a casa que ele ocupara com parcimônia e discrição. Era pouco mais
que uma sombra habitando um lugar. Deixou na casa a lembrança forte de
duas cenas ousadas: o desfile com farda de gala e o encontro com a mulher
que ele amava. Omar, mordido de ciúme, não tocou no nome do irmão. E a mãe, pura ânsia, dizia que filho que parte pela segunda vez não volta mais a casa. O pai
concordava, sem ânsia. Sonhava com um futuro glorioso para Yaqub, e isso
era mais importante que a volta do filho, mais forte que a separação. Os olhos
acinzentados de Halim se acendiam quando dizia isso. Eu vi esses olhos muitas vezes, não tão acesos, mas tampouco baços. Apenas cansados do presente, sem acenar para o futuro, qualquer futuro.