Luzes Amarelas

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O inverno chegou rápido em Foxtown. As poucas árvores com folhas alaranjadas carregavam as lembranças de um outono cheio de amor, esperança e calor. As flores, já secas, permaneciam intactas em seus vasos enquanto os primeiros flocos de neve tomavam suas formas. Uma corrente de ar gelado cortava a respiração quente de Louisa enquanto ela subia a rua até sua casa, cheia de sacolas de mercado nas mãos.

Charlie colou as bochechas na janela da sala de jantar enquanto esperava pelo casaco vermelho aparecer no fim da rua. Estava perto das sete horas, o horário que a família Moore sempre jantava. Dylan nem havia dado falta da mãe, pois estava perdido a séculos de distância enquanto seus bonecos gladiadores planejavam a conquista do império dos bonecos de super heróis. Ele sabia que não era uma luta fácil - a resistência seria impiedosa, com toda certeza, pois os heróis não desistiriam facilmente e tinham recursos modernos que criavam vantagem -, mas tinha total confiança nas armas de sua equipe. "Prontos para o ataque, soldados?", dizia, enquanto equipava seus gladiadores com espadas afiadas. Chuck não sabia ao certo onde a mamãe estava, mas sabia que ela não estava ali e era hora de comer, pois sua barriga roncava sem parar e ninguém havia aparecido para alimentá-lo. Para Donna, mamãe estava atrasada. E porquê estaria atrasada? Ela nunca se atrasava. Será que alguma coisa havia acontecido?

Passaram-se cinco ou dez minutos - as crianças não sabiam ao certo -, mas mamãe chegou e com muitas sacolas prendendo seus dedos em nós avermelhados. Ela estava suando, mas não quis tirar o casaco. Derrubou as sacolas na mesa e sentou no chão, esperando pelo abraço dos filhos. Com exceção de Dylan, todos falavam sem parar e ao mesmo tempo. Louisa dava beijos nas testas de cada um, fazia questão de sorrir para cada novidade e tentava responder diferentes perguntas ao mesmo tempo.

Sim, Charlie, você pode dormir na casa de Georgia... Contanto que a mãe dela ligue em casa primeiro. Não, Donna, não aconteceu nada, mamãe só perdeu a noção do tempo. Chuck vai ganhar uma comidinha gostosa, vai sim! Dylan, sua mãe chegou bem e a janta sai em vinte minutos, isto é, se realmente quer saber. E por favor, ajude os seus irmãos a lavarem as mãos antes de comer.

Em vinte minutos, sem mais atrasos, estavam todos sentados à mesa, de mãos dadas e dando graças ao Senhor. Era a vez de Charlie, que só desejou que a comida estivesse deliciosa, que todos tivessem uma ótima noite e que Chuck crescesse logo para aprender a comer sozinho. Ah, e que Deus abençoe nossa família, é claro!

A noite passou rapidamente, como são as noites em que quatro crianças agitadas matam o tempo correndo pela casa enquanto mães e pais descansam os pés em uma banheira de água quente. Louisa estava no terceiro capítulo de seu mais novo livro, um romance chamado "Sob as luzes amarelas", cujo protagonista era um sujeito novo, dono de uma concessionária, que redescobria uma paixão adormecida de sua adolescência e resolvia fazer uma enorme viagem de carro para reencontrar seu amor. Estava na descrição de sua amante: "uma jovem sincera, porém misteriosa, cujos olhos denunciam verdades que os lábios jamais iriam revelar"...

Hora de dormir. Todos na cama, um por um. Chuck no bercinho azul-claro com seu cobertor de unicórnios: um beijinho na testa de boa noite. Donna em sua cama de princesa, com um pijama de arco-íris, abraçada em seu ursinho de dormir: vamos ler o conto da princesa arco-íris e dormir rapidinho; era uma vez... 

Charlie não gostava muito da hora de dormir. Preferia ficar brincando na casa de bonecas até pegar no sono e apagar ali mesmo, no tapete. É por isso que Louisa deixava a menina por último,  e ficava conversando até que ela caísse no sono em sua cama de nave espacial. Dylan já era grandinho e muitas vezes ia dormir só de manhã, quando acabassem os jogos no computador ou os outros amigos já tivessem ido descansar.

O silêncio após a meia noite era tranquilizador e também assustador. Louisa sentia falta de ouvir mais uma voz antes de se deitar, alguém com quem conversar e que ocupasse esse silêncio todo com algo menos infantil, talvez como um conselho, uma notícia ou uma declaração apaixonada. Ela se recusava a lamentar tudo que havia acontecido; ao invés disso, simplesmente sentava a beira da cama, ligava a TV e assistia aos noticiários até apagar.

Com quatro crianças em casa, quem precisa de despertador para acordar? Se não era o choro de Chuck, ou uma briga entre as meninas porque uma pegou alguma coisa da outra, era o mais velho com suas músicas escandalosas que acordavam toda a vizinhança logo antes da hora de trabalhar.

"Bom dia, crianças, café na mesa". Louisa sorria porque sabia que não havia nada melhor nessa vida que fazer comida para suas crianças. Ela já tinha visto a coisa toda: a vida de solteira, os bares das madrugadas, as casas noturnas, o mesmo homem na mesma cama, reuniões com centenas de predadores no maior estilo de Wall Street roubando suas ideias, tudo que havia para ser visto. Ser mãe era simplesmente a melhor decisão que tinha tomado. 

Depois que todos fossem para a escola e a babá chegasse para tomar conta de Chuck, teria seu pequeno dia de compras no shopping da cidade. Além de comprar os presentes de Natal, que sempre comprava meses antes do feriado, ia aproveitar para provar umas roupas novas. Fazia tempo que não tirava o dia para si mesma... Quando deu meio dia, deixou o dinheiro nas mãos de Tina e correu para o carro. "Obrigada, senhora M. Eu e o Chuck ficaremos bem".

Arrancou com o carro para a direita, seguindo rua abaixo na direção do Center Shop. Duas rotatórias, um atalho pela rua do dentista, virar a direita duas vezes e pronto, lá estava. Um caminho que Louisa já conhecia bem, assim como tudo nessa deliciosa rotina que nada mudava.

Ruas, curvas, esquinas... muita neve, para variar. Neve sob o capô, nos vidros, embaçando a visão do carro. Muita neve nas ruas, também. No rádio, diziam: "a maior temporada de inverno dos últimos sete anos começa hoje em Foxtown". Mas era assim todos os anos, até com as mesmas temperaturas, provavelmente eles só não tinham mais histórias para contar.

De repente tudo que se via era o branco da neve; o caminho já não parecia o mesmo, mas todas as ruas pareciam iguais. Louisa girava sem parar. Girou até que uma árvore, que nunca tinha visto antes, parou com tudo. Sentiu o sangue queimar a garganta, enquanto lágrimas quentes borbulhavam em seus olhos e o mundo todo parecia esquentar.

Louisa não conhecia mais o caminho e não sabia para onde ir agora. Era novembro, início de inverno, mas Louisa sentia o verão queimar em todas as partes de seu corpo. As luzes amarelas  não paravam de piscar enquanto seus olhos, aos poucos, perdiam os sentidos e paravam de observar. Seu último pensamento foi se tinha dito "eu te amo" antes das crianças irem para a aula.

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