...acho que foi em 1961. Ela só soube que estava grávida quando a barriga se fez perceber mais do que o normal. Ela nem sabia que a falta de regras fosse sinal de qualquer coisa. Ela não tinha mesmo muita instrução para saber alguma coisa, mal aprendera a assinar o próprio nome. Também não sabia que as agarrações com o marido da patroa resultariam naquilo. Depois que a mãe gritou: "Minina, que diacho cê foi fazer de si escarafunchar com o marido da patroa? Agora tu tá é perdida pra sempre, minina!", ela não quis mesmo nem saber de voltar para o trabalho.
Ela só ia duas vezes por semana mesmo, apenas para lavar, à mão, as roupas finas da patroa. Ela nem tinha carteira assinada ou qualquer tipo de contrato. Era tudo "de boca". Fora indicada pela vizinha que era a principal lavadeira da casa. Mas ficou triste mesmo quando atinou que não iria mais comer, até não se sabia quando, arroz e feijão, ou bife com batata frita. Nem tampouco marrom glacê. Tudo aquilo era caro e só tinha na casa da patroa ou em supermercados onde ela não poderia entrar. Qualquer coisa que sobrasse da janta da patroa era mesmo boa.
No barraco em que morava com a mãe, bem no meio da Favela da Praia do Pinto, não tinha nada daquilo, não. Lá não tinha nem banheiro. Faziam as necessidades num buraco, depois se enterrava ou, então, jogava-se tudo num valão. Água, não tinha todo dia, não. O povo tomava banho de caneco só quando a água passava por lá furtivamente. Só quando caía água no cano que passava pela favela. Aí, todo mundo tinha de ficar na fila para encher os baldes velhos e quadrados de metal, as latas de banha de porco. Mas ela ficou com tanto medo da patroa que nem apareceu mais, sumiu de vez.
Ela que já era tão magrinha, coitadinha, de quase nunca ter o que comer, foi ficando com os braços mais fininhos, à medida que a barriga inchava. Um dia, outra vizinha lavadeira teve pena e disse para a sua mãe, quase idosa, que iria tomar conta dela em troca de ajuda para lavar a roupa do pessoal da Zona Sul, até quando a barriga deixasse. A barriga deixou até o dia em que ela sentiu uma forte dor no baixo ventre empurrando alguma coisa para baixo. O menino nasceu ali mesmo na boca do tanque da vizinha. Foi um corre-corre.
– Alguém pega água quente e uma tesoura! Corta logo isso! Pega também uma fita para enrolar a barriga do minino pra ele não ficar com o umbigo estufado.
E o danado era bonitinho.
– Um moreninho de traços finos – disse uma vizinha.
– Esse vai dar trabalho com esses zoinho preto. Põe uma figuinha nele, fia! – dizia uma.
– Deixa eu pegá ele no colo! Olha que parece que já tá vendo tudo! Minino esperto! – disse outra.
Ela, a mãe, se apaixonou pelo menino logo que começou a se esquecer da dor e pôde tê-lo nos braços. E dali para frente foram um amor só: o amor da mãe pelo filho. Assim que pôde, ficou mais empenhada no serviço. E tanto fez que, com o tempo, até conseguiu arranjar trabalho em casa de família no Leblon. O melhor é que dava para ir andando. De volta para o barraco, ela se apegava ao menino, sempre deixado com a mãe ou na casa de uma vizinha.
Ela amava tanto o seu filho que trabalhava até demais da conta para que não lhe faltasse leite. O menino crescia aos dengos da mãe e da avó. Aos sete anos, começou até a frequentar explicadora para aprender a ler e escrever e o menino fazia gosto. No domingo, a mãe preparava galinha e tinha até iogurte de morango na sobremesa, um luxo só. Ela, até tinha tido uns namoricos, mas tinha medo de pegar barriga de novo e desistia logo.
– Depois, pra que homem, se eu já tenho o meu minino? – ela dizia e repetia.
Tudo andava bem, até que um belo dia de verão de 1968, enquanto ela polia a prataria do apartamento onde trabalhava, a sua patroa lhe disse enquanto lia o jornal:
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Um Amor
General FictionOs doze contos de William Soares dos Santos, reunidos sob o título de Um amor, tentam, de saída, uma abordagem claramente centrada na paisagem unívoca: a cidade do Rio de Janeiro. Essa escolha do cenário, em verdade, se restringe ainda mais, se cons...