Autora: MairySarmanho
- Corre, mano, qui os homi vão ti pegá!
Desceu a rua correndo, evitando as poças d'água, tropeçando no tênis dois números maiores que roubara na semana passada, tentando sobreviver à saraivada de balas que zuniam em seus ouvidos, quase acertando a cabeça e o encaminhando para o inferno.
Mas nem o inferno podia tocá-lo, já que não acreditava no diabo nem em Deus. Não obstante as tentativas da mãe de arrastá-lo quase pelos cabelos para igreja, jamais pode compreender a existência de um ser com capacidade para mudar tudo e que ignorava a dor que havia passado desde pequeno. A mãe quase não o havia amamentado, pois ficava fora a semana inteira cuidando do filho de uma rica que morava no bairro chique. Só a via nos domingos de tarde, por algumas horas. Foi a irmã que, entre descuidos, o manteve vivo nos primeiros anos, misturando aveia e leite com água na mamadeira mal higienizada. A mesma irmã que morreu num beco escuro poucos anos depois e a polícia sequer se dignou a elucidar sua morte. Era prostituta e essas pessoas não estão enquadradas na classe cidadão de bem, por isso foi esquecida em seus quatorze anos de idade e sofrimento.
Correu o máximo que pode, e nem parou quando o grito do amigo se misturou ao do tiro.
Ao chegar na avenida, sentiu-se protegido por uma multidão que protestava contra alguma coisa. Pegou uma bandeira emprestada, limpou o suor da testa e começou a repetir os gritos de ordem. Viu os policiais passarem ao longe e nenhum olhou em sua direção. Estava a salvo.
Entre os manifestantes estava a mulher. Não uma mulher qualquer, e sim a mulher! Dona de uma beleza estranha, quase surreal, ela sorriu para ele. Sentiu um calafrio, mas foi se aproximando de mansinho, acotovelando a pessoa mais próxima, escancarando seu pavor ao sentir o perfume que emanava daquele corpo gorduchinho. Respirou fundo, deu mais um passo e encostou-se em seu ombro, como quem não quer nada.
O sorriso dela aumentou ainda mais e sua mão tocou a dele, cúmplices, dividindo a bandeira que empunhava sem querer. Percorreram ruas, esquinas, ladeiras até o momento em que a multidão foi dispersa com gás lacrimogênio e spray de pimenta. No susto, pegou a mão dela e carregou-a até um recanto que já conhecia há tempos, longe do tumulto e dos tiros que ecoavam à poucos passos deles.
- Obrigada. – A voz parecia saída de uma flauta, tão fina e suave. – Meu nome é Maria Inês, e o seu?
- Pedro, eu me chamo Pedro.
Trocaram sorrisos, palavras e um beijo.
Reencontraram-se outras vezes, algumas no reduto dela, outras no dele. Ele ensinou-lhe a não temer os pobres, a entender a miséria, aceitar o tráfico. Ela explicou-lhe sobre política, revolução e esperança. Fizeram sexo na cama dela, outras no barraco dele. Apaixonados, prometeram que desafiariam o mundo para ficarem juntos.
Mas a realidade tem nome.
E se chama sociedade.
Grávida, ela morreu no parto porque a família não queria ajudar uma pessoa que havia descambado para o crime e deixaram-na entregue à própria sorte. Ou miséria.
Pedro enterrou Maria Inês numa cova rasa, próxima ao seu barraco, enquanto tentava alimentar o recém-nascido que não parava de chorar. Aderiu de vez ao crime, começou a vender trouxinhas na esquina para alimentar o pequeno, foi evoluindo até assumir um lugar privilegiado no morro.
Um dia, mexendo nas coisas de Maria Inês, encontrou a figura de um palhaço. Pediu para um garoto que sabia tatuar, que o fizesse do lado esquerdo do peito. Mas o jovem fez sua própria versão do desenho e, desde então, um palhaço assustador começou a dividir o espaço no corpo do homem. Pedro matou o tatuador, sem hesitar, de tão indignado que ficou.
A partir de então, matar virou rotina. Não fazia o que ele queria, tinha de morrer. O palhaço foi tomando conta cada vez mais de sua pele, se agigantando, crescendo.... Quantos mais ele matava, mais o palhaço crescia e mais feio ficava.
O filho tinha dois anos quando adoeceu. E, assim como Maria Inês, o hospital disse que não tinha vagas, que levasse o pequeno para casa e voltasse no dia seguinte. No outro dia Pedro enterrou a criança.
Furioso, ele pegou a bandeira que jazia embaixo da cama e saiu pelas ruas para arrancar cabeças. E arrancou quantas pode, não importando de quem era. Queria apenas sentir o gosto adocicado de sangue. Com ele seguiram uma legião de miseráveis, cadavéricos, sem nada a perder.
Durou trezentas e quarenta noites e dias a degola. No final, cansado, Pedro sentou-se e pediu que lhe trouxessem o corpo da esposa morta e do menino. Colocou-os no palácio da república, sentados numa linda poltrona forrada com veludo vermelho e obrigou os poucos remanescentes a beijarem sua mão e pedir desculpas.
Pedro governou por muitos anos, tantos que até perdeu a conta. Um dia, simplesmente, ele desapareceu. Diz a lenda que, nas noites escuras e frias, um palhaço sai à noite arrancando as cabeças daqueles que não acreditam em sua força.
Essa é a história de Pedro e Maria Inês de Salvador.
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PALHAÇOS
Short StoryColetânea de contos, microcontos, reflexões, poesias produzidas por autores diversos, cujo tema são aqueles que fazem do riso sua arte, do nariz vermelho o seu uniforme e, quando encarnam tal personagem, causam séries de sentimentos possíveis: alegr...