Passanel

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Passanel

Altair Marino

26 de agosto de 1967

O céu estava mesclado de branco, azul, amarelo e vermelhos de todos os tons: um monte de bolinhas de gude. Num dia seco que nem hoje o vento arrasta um pó fino e a mãe diz que é um canto de liberdade. Em dias molhados, o céu deixa poças para brincar. Ele mora perto do rio e eu logo acima, perto da igreja. A gente vive de pé no chão. Um dia procuramos na rua maços de cigarro e achamos marcas inglesas. Minha mãe disse que o Pall Mall é melhor que o Continental, mas garante que o Lucky é melhor. Eu não ligo e adoro o Mescla Dourada. O pai dele manda comprar Lincoln, mas ele gosta do Mistura Fina. A gente quer o Camel que é mais difícil. Minha mãe fuma Capri e bebe Tatuzinho.

02 de setembro

Cedros e Pinheiros são a cara do meu bairro, que é todo verde. Aqui, grandes casas de tijolinhos à vista tem mulheres de cabelos amarelos que dão doces. Nas ruas Kansas, Michigan e Miami andam Fords e Chevrolets. Indiana é uma rua índia e Florida, florida mesmo, de flores. Da fábrica da Avon, desço pelo asfalto até o rio das Águas Espraiadas, cheio de mamonas. Paineiras e Seringueiras tem de monte nas ruas Castilho, Araçaíba, Munduba e Pitu onde meu amigo mora. Sua casa é um caixote de porta e janela, na Guaraiuva, de uva, uma rua bem nossa, de terra, com Caminhões e Fuscas. O pai dele tem um Jeep.

09 de setembro

Meu lindo mora num bairro verde e marrom. As árvores desfolhadas me chamam muito a atenção. As Paineiras me dão medo porque tem espinhos. Amo a luz batendo em troncos e galhos, adoro o ver o azul embaixo dos fiozinhos de luz pintando ramos fininhos. Em dias de chuva, árvores secas me deixam triste, como o cair das folhas na época do frio. Eu me importo com sementes e frutos e ele com crianças e brinquedos. Gostamos das mesma coisas, sabe, eu de árvores secas e animais, ele de crianças doentes e largadas. A gente combina desde cedo, mas ele não percebe. Tem sempre uma cruz perto de mim e isso registro aqui no meu diário.

16 de setembro

Eu detesto casa vazia – minha mãe trabalha –, mas nunca fico só. Adoro sábados, quando a mãe dele leva a gente no Ibirapuera de ônibus, que sai da Rua Michigan. Hoje todo mundo tomou sorvete e andou de pedalinho. Domingo passado no Pacaembu a gente virou santista. Amanhã na casa dele vai ter pizza, cachorro quente, Qsuco e na televisão tem Jovem Guarda. Na semana que passou a gente se vendeu para fazer compras: no caminho de volta comemos mussarela, pão fresco e tomamos leite direto do vasilhame: a mãe dele ficou louca. O cara do Jeep, só namora sua mãe: ele contou que seu pai, mesmo, sumiu. Meu pai, também, nem lembro. Minha mãe não namora, mas bebe.

30 de setembro

Perto do rio tem casas em construção, árvores secas, mamonas e muito mato. Brinca todo mundo no campinho, com ou sem brinquedo. Por ali passa um Fusca, um Dkw ou outro; às vezes um Chevrolet. As meninas ficam em casa, mas eu jogo bola e taco. Ele faz estilingues, eu dou as forquilhas. Ele vira pirata no rio e soldado nas construções e eu acompanho. Do rio ele leva missangas para Aninha e eu choro escondida. De noite, cheirando a Gessi, todo mundo brinca na rua. Televisão só quando chove. Os meninos adoram a Regina e a Claudinha. Ele só quer a Aninha que é uma feia. E eu, ele.

07 de outubro

Hoje ele contou da mulher mais feia do mundo que viu num sonho, mas eu não entendi nada. Em seguida disse que tem dó das feias, das loucas e de quem fica de fora. Ele me acha bonita; isso eu entendi muito bem. Outro dia defendeu uma menina doente que babava: nela os meninos batiam. Quanto mais chorava, mais jogavam pedras; vaiavam, até. Mas ele colocou todos pra correr. Bravo, logo depois, contou que nunca teve festinha de aniversário: "A gente nem tem brinquedos, nada." Um dia desses deu conta que pais jogam futebol e ficou mudo. Eu cheguei bem pertinho e dei um abraço nele. Não faz mal, disse brincando, quem precisa de pai?

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⏰ Última atualização: Feb 10, 2017 ⏰

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