DESPEDIDA

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No instante em que desceram as lágrimas eu chorei. Jazia resguardada em meu pranto, esbodegando-me enquanto devorava uma caixa de bombons. Enlameava os dedos com o doce e em seguida lambia-os freneticamente, como se isso pudesse acabar com a dor que agora revolvia algo desconhecido em mim, algo que nem eu mesma conseguia discernir. Estava claro que nenhuma ação poderia alterar a escolha feita pelo destino. Ele havia sido perfeito em sua insurreição. A garota indomável já não possuía a carranca de outrem, perdera agora por completo o equilíbrio que antes esbanjava, tornando-se incapaz de tomar qualquer decisão.

Aninhei-me ao travesseiro, soluçando descompassadamente, e então comecei a refletir sobre os últimos momentos que estive em sua presença. Minhas últimas palavras, as derradeiras atitudes, tudo ascendia como um furacão que destruía minha mente, pungindo-me sem ao menos conceder-me o direito à dúvida. Eu sabia que jamais voltaria a ser eu mesma de novo, não havia nenhuma chance de recuperar a parte de mim que fora soterrada pela perda. Sentia-me só, completamente só, destituída inclusive de minha própria consciência.

­­­­- Eu te odeio Afonso, te odeio!- Suas mãos estremeceram em meu braço, pressionando-os resolutamente. Ele vociferou, chacoalhando-me violentamente ao passo em que seus olhos encontraram os meus. Imediatamente eu me arrependi do que havia dito, todavia, minha expressão permanecia firme, sem demonstrar nenhum sinal de arrependimento.

- Teu pai Laís, eu sou teu pai!- ele dizia para mim, magoado.

-Por que você é tão mentiroso? Por que não foi você naquele carro ao invés dela? Ela me entendia, ela cuidava de mim. Você é só um bêbado mentiroso, e eu não quero te ver nunca mais.

Soltei meu punho de sua mão, arrodeando o balcão enquanto me direcionava para o corredor. Minhas malas estavam prontas, posicionadas ao lado da escada. Lá fora meu parceiro me aguardava ansiosamente no carro, insistira para entrar comigo, entretanto eu não pude conceder-lhe o pedido, haja vista que aquele era o meu momento e eu não gostaria de compartilhá-lo com mais ninguém, nem mesmo com o cara que mais me dera apoio durante todos aqueles meses de reclusão.

A partir do momento em que pegasse as malas, não poderia regressar em minha decisão. Haveria de sair imediatamente por aquela porta e nunca mais retornaria aquele ambiente que um dia chamara de minha casa, nunca mais olharia para aquele homem que eu considerava odiar e que um dia havia sido meu herói.

- Você não pode ir embora Laís! Eu vou atrás de você, pode ter certeza. Não vai adiantar fugir de mim garota, eu não vou deixar aquele marginal sem vergonha aniquilar minha filha, minha única filha. Está ouvindo Laís? Se passar por aquela porta eu vou acabar com aquele desgraçado, vou destruir a vida dele!

Sua voz rebombou como o apito de um caminhão desenfreado. Nem se quer virei para encará-lo novamente, era fato que não sentiria falta de sua presença, por isso continuei minha saída a passos largos ignorando-o completamente apesar de que, dessa vez, suas palavras soaram incisivas.

Mais do que nunca eu deveria deixar aquele lugar. Não mais dedicaria tempo a alguém tão mesquinho quanto Afonso, ele arrancara tudo que eu podia oferecer, levara consigo tudo que eu tinha. Por culpa dele minha mãe estava enterrada a sete palmos no chão e tudo o que ela se esforçara tanto para construir foi perdido no jogo, por causa dele!

- Me solta, eu vou embora, eu vou... embora, me larga!

O infeliz segurou minha camiseta, de modo que não consegui mais avançar, estava presa pelo colarinho e não tinha forças para me desprender dele. Soltei as malas e arquejei virando em seguida para ele, que permanecia a me segurar, as veias de seu pescoço se distenderam e sua boca crispou-se em um bramido aterrador.

- Para Laís, para filha, eu te amo, por que está fazendo isso com seu pai?

Quase num sussurro eu respondi, sem qualquer comoção pelas lágrimas que agora escorriam em sua face, manchando a gola-póla que eu lhe dera de presente há dois anos no dia de seu aniversário.

- O que você não fez... Por mim e por minha mãe! Foi isso o que você fez - parei por um instante, atordoada, tentando respirar e em seguida continuei:

- Lembra quantas vezes quebrou os móveis dessa sala, quantas vezes virou a mesa de jantar? Lembra?

- Desculpa filha, eu não..

- Cale a boca!- interrompi-o bruscamente enfurecida, queria rasgar sua garganta com minhas próprias mãos e esfregar sua cara na parede sem nenhuma condolência. Aquele pobre miserável não merecia nada de mim, nem mesmo minha piedade - Não está satisfeito seu desgraçado! Você acabou com tudo, destruiu nossa família, matou a minha mãe- enfatizei o pronome possessivo visando seu remorso eminente- e agora quer que eu te perdoe? Por quê? - esbravejei loucamente- por que eu deveria te perdoar Afonso, se você não passa de um canalha miserável?

Desprendera-me de suas mãos e agora eu o segurava do mesmo modo que fizera a pouco ao afirmar que era meu pai. Passei então a esmurrá-lo freneticamente, empurrando-o contra a parede com toda força que conseguira juntar nos braços, ele recuou assustado, sem compreender minha atitude, no entanto, em poucos segundos já estava me segurando novamente.

-Eu preciso que me escute Laís, eu preciso que me dê uma chance para tentar me justificar, não posso permitir que vá assim dessa maneira, eu sei que fui um idiota, mas eu mudei filha, eu mudei, posso provar isso para você.

Ele cruzou os braços em torno de meus flancos, e então me abraçou profundamente, soluçando ao mesmo tempo em que cheirava veemente meus cabelos. A sensação que me invadiu foi inédita, não sabia distinguir se o que se passava era real ou se de alguma forma eu fantasiara aquela cena, não sabia como deveria reagir, ele estava preso a mim e chorava sem nenhuma compostura, Afonso suplicava pelo meu perdão e pedia para que eu não fosse, todavia, minha escolha havia sido tomada, portanto eu deveria partir logo, independente do que ele fizesse para tentar me dissuadir.

Deixei que ele se acalmasse e após alguns instantes ele me soltou, não havia mais fúria em seu olhar, apenas desespero, sim, ele estava desesperado, mas nada que fizesse poderia alterar minha decisão. Fitei-o por alguns instantes a fim de me certificar que estava bem, desconhecia o motivo de tal preocupação, entretanto eu não queria deixá-lo daquela forma, mesmo sentindo o que afirmava sentir por ele.

Afonso estava cabisbaixo, assuando o nariz ruborescido, e quando ergueu sua cabeça, me surpreendeu com sua nova ação. Conjeturei que fosse investir mais palavras, elaborando outro apelo piegas, não obstante, lançou-me somente um olhar taciturno, o que de certo me espantou.

-Não há nada que diga que me faça ficar- eu disse por fim- estou convicta de minha decisão Afonso, não posso morar sob o mesmo teto que você, prefiro estar com Fred, e de qualquer modo eu sou maior de idade, sei me cuidar sozinha.

Ele concordou com a cabeça, resignado, e rapidamente voltou a me abraçar, dessa vez com menos intensidade.

- Está bem Laís, se é assim que você quer, então que seja feita a sua vontade. Só espero francamente que fique bem minha filha, espero de verdade.

Assenti com a cabeça e em seguida peguei as malas esparramadas no chão. Fechei os olhos sentindo dor e alívio simultaneamente, direcionei-me até a porta, e dei adeus a minha despedida.

-Não voltaria mais ali, nunca mais! - Foi o que disse para mim. Mal sabia eu, porém, que estava absolutamente enganada. Ah, como eu estava enganada!

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⏰ Última atualização: Feb 11, 2017 ⏰

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