Que é uma lágrima? A ciência dar-nos-á uma explicação positiva; a poesia dirá que é o soro da alma, a linguagem do coração. Bem pouco avulta essa leve gota de humor que os olhos vertem por alguma causa física ou moral. É nada e é tudo; para os ânimos práticos é um sinal de fraqueza; para os corações sensíveis é um objeto de respeito, uma causa de simpatia.
Alexandre Dumas comparou eloqüentemente o dilúvio a uma lágrima do Senhor, lágrima de dor, se a dor pode ser divina, que a impiedade arrancou dos olhos do autor das coisas.
Mas a lágrima cuja história empreendo nestas curtas e singelas páginas não foi tamanha como essa que produziu o grande cataclisma. Foi uma simples gota, derramada por olhos humanos, em hora de aflição e desespero. Quem tiver chorado achar-lhe-á algum interesse.
Conheci um homem de trinta anos que era o homem mais singular do mundo, começando por parecer sexagenário. Era alto, e daquela severa beleza que consiste em mostrar nos traços do rosto os sulcos de um grande e nobre sofrimento. Os cabelos eram todos brancos, caídos para trás sem afetação nem cuidado. Tinha os olhos fundos. Era pálido, magro, curvado. Vivia só, numa casa escondida lá para as bandas de Catumbi, lugar que ele próprio escolhera para não dar muito trabalho aos amigos que quisessem levá-lo ao cemitério. Poucas vezes saía; lia algumas vezes; meditava quase sempre.
Os seus passeios ordinários, quando lhe acontecia passear, eram ao cemitério, onde se demorava habitualmente duas horas. Quando voltava e lhe perguntavam de onde vinha, respondia que fora ver casa para mudar-se.
Alguns vizinhos supunham-no doido; outros contentavam-se em chamá-lo excêntrico. Um peralvilho que morava alguns passos adiante concebeu a idéia de ir denunciá-lo à policia, ato que não realizou por lhe terem ido à mão algumas pessoas. Os meninos vadios do lugar puseram-lhe uma alcunha, e de tal sorte o perseguiam às vezes que o pobre homem resolveu sair o menos que pudesse.
Chamava-se Daniel, e, aludindo ao profeta das escrituras, costumava dizer que estava no lago dos leões, e que só por intervenção divina é que o não devoravam. Os leões eram os outros homens.
Não sei por que, desde que o vi simpatizei com ele. Tinha eu ido passar uma tarde em casa de uma família de Catumbi, onde me falaram das singularidades do velho. Tive curiosidade de conhecê-lo. Efetivamente passou ele pela rua, e todos correram à janela como se se tratasse de um urso. Percebi desde logo que aquele homem era uma ruína moral, a tradição de um grande padecimento, sustentada por urna existência precária. Resolvi tratar com ele, e comuniquei a minha intenção às senhoras que me rodeavam. Foi um motivo de chacota geral. Mas eu fiz parar o riso nos lábios das mulheres dizendo estas simples palavras:
— E se aquele homem padece por uma mulher?
As mulheres calaram-se; os homens olharam uns para os outros. Dali a oito dias fui bater à porta de Daniel. Apareceu-me um preto velho que me perguntou o que queria. Apenas lhe disse que desejava falar ao dono da casa, respondeu-me que ele saíra a passeio. Como eu sabia que o passeio era ao cemitério, dirigi-me para lá.
Apenas entrei numa das ruas da cidade dos mortos, avistei Daniel ao longe, sentado numa pedra, ao pé de uma sepultura, com a cabeça entre as mãos. Aquele aspecto fez-me parar. Era positivo que todas as excentricidades de Daniel estavam presas a uma história, que devia ser a história daquele túmulo. Encaminhei-me para o lugar onde o velho estava, parando a alguns passos, e conservando-me ao pé de uma campa, a fim de que lhe parecesse que um motivo, que não o da curiosidade, levava-me até ali.
De quando em quando levantava eu a cabeça para ver o velho, e achava-o sempre na mesma posição. Esperei uma hora que ele se levantasse, até que, perdendo essa esperança, tratei de retirar-me, quando vi ao longe, encaminhando-se para aquele lado, um cortejo fúnebre. Era mais um habitante que vinha tomar posse da sua casa na vasta necrópole. O ruído dos passos dos últimos amigos e conhecidos do novo locatário despertaram o velho, que se levantou rapidamente, lançou um olhar para a sepultura, e encaminhou-se para o lado do portão. Quis ver se a campa ao pé da qual o velho estava assentado tinha algum nome, mas ao mesmo tempo temi perder o velho, que andava rapidamente. Contudo apressei o passo, e pude ler rapidamente na campa estas simples palavras:
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A HISTORIA DE UMA LAGRIMA (machado de assis)
RomanceUma historia para comover quem e de pedra....