— Preciso falar contigo.
Foi o que Lígia me disse quando girei a maçaneta e a vi diante de mim. Nem um boa tarde, ou boa noite, nada. Logo empurrou-me contra a porta; entrou em meu apartamento com a intimidade de um parente ou amigo íntimo. Bem possível que, talvez e só talvez, fôssemos íntimos. Na verdade, nem me dei conta de quando chegamos a tal ponto, nossa relação foi. Apenas foi. Fluiu. Percebi duas linhas verticais enrugando-lhe a testa, a fumaça densa das baforadas de cigarro cobrindo seu rosto pálido. Lígia era ansiosa. Lembrei dela ter me dito isso um dia. Eu achava frescura, coisa de quem quer aparecer, até vê-la paralisada em sala de aula. Sentada na carteira com os braços cruzados, a postura enrijecida, o pescoço petrificado, só percebi quando a cumprimentei ao final da aula e a senti gelada, o sovaco molhando a blusa. Ela danou-se a vaguear pela sala da minha casa feito bicho desgovernado, analisando os móveis como se admirasse obras de arte. Os olhos marcados a lápis, vivos, me lembravam carne, porém seus lábios não eram grossos; suas pálpebras tremelicavam de quando em vez. Deu um último trago no cigarro.
— É responsabilidade tua também.
As palavras de Lígia, agressivamente brandas, contradiziam seu comportamento inexato, pediam arrego. Eu já a conhecia o suficiente para percebê-la nas entrelinhas. Ela deixou cair a bituca de cigarro e, antes que eu construísse algum enunciado com sentido completo, ou fechasse a porta ainda aberta, aproximou-se de mim a segurar-me o queixo com o polegar e o indicador da mão direita. Se pôs a fitar-me duramente, como se relâmpagos saíssem de seus olhos. Eu permaneci rente à porta.
— Escutaste?
— Fiz o que pude, agora te vira.
— Eu não a fiz sozinha.
— Por isto mesmo.
— Tu queres que eu...
— Quero que assumas a responsabilidade pelo que fizeste.Soltou-me ao sentir seus olhos inundarem. Cambaleou pela sala segurando-se nos móveis e sentou-se no braço do sofá com as mãos em meio ao rosto. Em segundos a vi convulsionar-se em soluços feito criança. Seu pranto não me comovia, nem me surtia efeito. Certo que ela tinha lá os problemas dela, mas certas coisas não se justificavam. Que procurasse um psicólogo, um médico psiquiatra, ora! Eu não podia arcar com o peso de Lígia. É desconfortável sentir piedade de alguém. Ela limpou as lágrimas, passou as mãos no cabelo, silenciou por um instante. Em seguida, a olhar para a porta do meu quarto, questionou-me:
— Vais me deixar ao relento?
— Não achas que fiz o suficiente por ti?A vi tremer ao bocejar de nervosa. Ela contraiu os lábios, depois proferiu palavras com lentidão, como se estivesse a separar as sílabas.
— Eu não a fiz sozinha, cara. Não a fiz.
— Tu devias ter aprendido na hora certa.
— Não podes me deixar assim.— Posso.
— Não podes! — ela exclamou num grito estridente.
Aproveitei a porta ainda aberta e sugeri a Lígia que fosse embora, todavia ela recusou com veemência ao ver, por baixo da porta do meu quarto, uma sombra a se movimentar. De ímpeto, saltou do sofá para a maçaneta, girando-a afoita. É nisso que dá, dar liberdade demais aos outros. No mesmo instante ouvi alguém sair do elevador, mas não reconheci quem era, pois fechei a porta depressa e a segui.
— Então é por isso que me negaste ajuda?
Os papéis pelo chão do quarto. Tintas, pilotos, lápis; réguas, esquadros, um balde. E um homem: Jorge.
— Foi por ele que me trocaste?Eu o conheci na faculdade, assim como Lígia. Trabalho em grupo é uma merda. Mas não daquela vez, tiramos nota máxima. E cumprimentos aqui, acolá, conversa vai, conversa vem, encontros, liberdades, ficamos próximos. Quiçá mais próximos do que imaginávamos. Os três. Deve ter sido a partir daí que Lígia começou a se escorar em nós, em mim. É complicado quando uma amizade se desgasta, sobretudo uma amizade recente. Amigos não usam uns aos outros, pelo contrário, amigos compreendem, partilham e constroem juntos. Estar com ela já não era agradável, seu carinho já não era prazeroso.
Seguíamos um roteiro. Marcávamos de estudar Direito Civil ou Constitucional em minha casa, no meu quarto mais precisamente. Enquanto eu e Jorge nos dedicávamos à matéria, Lígia acendia o isqueiro e sustentava seu vício. Ela gostava era do que vinha depois, quando fechávamos os livros. Começavam as conversas paralelas e, em meio ao turbilhão de palavras vomitadas, a fumaça do cigarro de Lígia tomava conta do quarto. Eu deitava no regaço de Jorge, que por sua vez, encostava-se na cama. Observávamos, os três, as formas que a fumaça adquiria, eram as nuvens do céu desenhado do meu quarto. Ela levantava-me a blusa e se punha a dançar com os lábios em meu abdômen como uma cobra destilando seu veneno. Jorge espiava atento, e Lígia dava-lhe um beijo bruto, um enroscar de línguas como se travassem uma luta de espadas. Eu a abraçava pelas costas apalpando-lhe os seios, ela murmurava algumas coisas, depois virava-se para mim e encostava a língua úmida no lóbulo da minha orelha, movimentando-a em zigue-zague. Os pelos do meu corpo eriçavam-se. Eu a afastava, e ela cínica exibia um riso frouxo de mata-diabo, como uma promotora de justiça ao mandar para a cela um pobre coitado. Enquanto isso Jorge a envolvia pela cintura.
Costumávamos desenhar nas paredes depois de descansar. Eu gostava quando as pessoas deixavam seus rabiscos, suas marcas, era como se tatuassem o meu corpo. Eles tomavam um piloto em mãos, às vezes eu trazia tinta e pincel, e deixavam a criatividade correr solta.
Isso foi se repetindo. Encerrei a conta quando me faltaram dedos para continuar. Com o tempo Jorge me alertou de Lígia. Quer dizer, ele comentou comigo que sentia-se mal pela nossa relação. Nossa vida sexual tornava-se ativa na mesma proporção em que o rendimento acadêmico de Lígia aumentava. Nos afastamos dela aos poucos, suas crises pioraram. Passamos a não responder suas mensagens, a ignorá-la nos trabalhos e a fugir dela na universidade. Até que iniciou-se a semana de provas, isto é, uma semana antes de ela invadir meu apartamento. Na segunda-feira pela manhã Jorge e eu estávamos numa lanchonete, na universidade, a estudar para a prova de Constitucional II, quando Lígia apareceu. Havia descoberto com o funcionário da coordenação do curso que a prova seria em dupla. Ela pediu, insistiu, implorou ajuda. Batemos o pé, negamos. Quando minha mão encostou no pulso de Lígia impedindo-a de roubar meu copo de suco de cima da mesa, senti ela suar frio. Naquele instante voltei atrás em minha decisão, decidi ajudá-la pela última vez. Jorge me olhou com reprovação, mas me entendeu em seguida.
Eu precisava de pouco para a aprovação na disciplina, ao contrário de Lígia. Na hora da prova resolvi lhe dar uma lição: respondi corretamente a primeira metade e errei de propósito a metade restante. O resultado fora lançado no sistema dias depois, tiramos o limite de nota azul. No entanto, Lígia precisava de mais. E veio em meu apartamento.— Eu não te troquei por ninguém.
— Então por que apagas os meus rabiscos da tua parede?
Eu silenciei, encabulado. Pensando bem, talvez não tenhamos sido os únicos a serem usados nesta história. Negligenciamos os sentimentos de Lígia. Será que eu fui justo com ela? Justiça é uma linha tênue, meu caro. E a angústia oprimia meu peito, meus pensamentos desordenavam-se feito cartas de um baralho. Tivemos, digo, acho que também tivemos nossa parcela de culpa.
— Cachorro!
Quis chorar, confesso. Foi como se o jogo tivesse virado de uma hora para outra. Eu quem havia traído Lígia. Mirei o chão, meus pés descalços sujos de tinta. Ela, então, chegou perto de Jorge e, ao repará-lo nos olhos, apanhou o balde de tinta e o jogou na cabeça dele. Tomou o piloto, os pincéis, rabiscou todo o meu quarto, das paredes aos móveis, o criado-mudo, a cama, a mim. Era o que Lígia precisava para dar fim ao seu transtorno: transbordar-se. E gritava, urrava desesperadamente, como um paciente em estado terminal. Espalhou tudo o que pôde pelo chão. Por fim, escarneou de mim, da minha pequenês, e se foi batendo a porta de entrada. Sequer ouviu quando gritei:
— E os cigarros?
Deixara o maço de cigarros cair. Mas deixara também a obra de arte mais grandiosa que os meus olhos puderam apreciar, meu quarto.
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Na Parede do Meu Quarto
Short StoryOs personagens falam por si. Três estudantes de Direito: um narrador sem nome; Lígia, uma moça que sofre de ansiedade; e por fim, Jorge, um rapaz dissimulado.