Em meio à tempestade de areia, a silhueta de uma caravana avança sobre o deserto. Uma família. Um homem, à frente, de olhos entreabertos e lábios ressecados. Atrás, uma mulher com o rosto coberto por um talho de pano roto e sujo; segura uma criança envolta a um manto. Atrás deles, uma menina, de sete ou oito anos, caminha vagarosamente sob a sombra enorme de seus descendentes. O vento fere as faces da pequena como uma lâmina, deixando cortes imperceptíveis. Ela tenta divisar, além das imagens embaciadas dos pais, a direção para a qual caminha. A tempestade segue intensa. Os caminhantes aproximam-se uns dos outros; como um rebanho instintivamente orientado para a unidade face ao perigo iminente.Após a turbulência, o pai avista pedaços de couro de animais remendados com tecidos, em uma armação sustentados por galhos. Em torno, uma fogueira apagada há poucas horas. A família desvia o trajeto para o local. A mulher acomoda-se com a criança, restando ao pai e a filha o papel de coletar gravetos para alimentar o fogo. A menina flexiona de leve o braço em sua curvatura; faz dela um suporte para os galhos estorricados. Uma leve lufada de ar farfalha seus cabelos e atinge as maçãs de seu rosto. Um vento frio, seco. A noite se anuncia no brilho míope de uma estrela solitária.
A família reúne-se em torno da fogueira. O frio retrai os músculos. A fome consome as derradeiras energias. A menina leva à boca uma lasca de madeira dos galhos esmigalhada entre os dedos. Aos poucos, o sono vai pesando em suas pálpebras. A fome, por outro lado, a quer acordada. A mãe percebe a inquietação da filha; e ordena-lhe que vá deitar-se. A pequena acomoda-se em torno do fogo, embaixo de uma coberta esgarçada. Fecha os olhos e finge-se dormir. A criança menor adormece aos braços do pai, enquanto a mãe forra o chão com um tecido.
O sono lentamente vai se sobrepondo à fome da menina. Um vazio profundo ao estômago, de caber um elefante. Sonha com o alimento; e traz as imagens oníricas para os espasmos de realidade que lhe sucedem. O pai e a mãe se mantêm acordados em um diálogo do qual a garota, apesar do sono, compreende algumas frases... "Amanhã, não pode passar de amanhã... Eu faço... Mas não temos nada para estancar o... Não importa. Dá-se um jeito. Precisa ser amanhã..."
O dia amanhece nos olhos da menina. Hora de recolher os poucos pertences. A mãe e o pai já haviam acordado. Ela apanha o tecido sob o qual dormiram e dobra-os em suas mãos pequenas. A mãe chama-a na tenda, em um tom de bronca, mas amenizado. Dirige-se para lá sob o olhar estranho e sisudo do pai. Ao entrar, tem as vistas ofuscadas pelo brilho da lâmina de uma navalha. A voz severa da matriarca ordena que tire as vestes e deite-se. Obedece. Solicita que abra as pernas e pressione firme nos dentes um talho de pano dobrado. A lâmina fria toca-lhe as genitálias. O primeiro corte é feito, acompanhado de um grito abafado na mordaça entre os dentes. Sente a navalha dilacerar uma parte íntima e profunda do seu ser; como se a mutilação não fosse apenas de um talho de carne. Aperta a areia entre as mãos, e uma gota fria de suor serpenteia-lhe o rosto pálido. Um líquido viscoso lhe escorre pelas pernas.
A mãe coloca a cabeça para fora da tenda e roga ao marido que traga panos limpos. Ao voltar-se para a filha, uma poça de sangue cerca o corpo da garota desfalecida. A mulher grita em tom alarmado o nome do marido; e ele surge apreensivo. Ela pressiona o tecido contra a virilha da pequena até sentir estancar o sangue. Toma em uma das mãos um misturado de ervas preparado para a situação e o aplica ao local do sangramento.
O homem sente os seus pulmões se encherem de poeira: outra tempestade. É preciso fazer a filha recobrar a consciência. Enfia a cabeça na tenda e alerta a esposa. Recolhem os pertences e enrolam-se em lenços e turbantes. O pai ergue a filha desfalecida; e, em um só golpe, joga-a para as costas. Sem ele perceber, o osso de sua coluna cervical e as genitálias mutiladas da garota entram em atrito. Ela desperta abruptamente em uma dor insuportável. Retorce-se, de maneira que o pai perde o equilíbrio.
Ele se levanta, estende o olhar sobre algumas dunas, procura o rosto da esposa; e ordena com um gesto para terminar o procedimento. A mulher, contrariada, não denota qualquer expressão que se oponha à fala de seu esposo. A pequena é colocada sob um lençol estirado ao chão. Suas pernas são abertas, a mãe passa a linha na agulha e costura os lábios genitais da filha, deixando apenas uma fresta por onde ela possa urinar. A menina outra vez desfalece de uma dor agonizante. O pai a toma pelos braços. A esposa guarda os instrumentos utilizados; e recolhe do outro manto estendido a criança menor. Enrolam-se novamente em lenços e turbantes; e prosseguem seu trajeto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Corte profundo
Short StoryNarrativa que recorta um episódio cotidiano de uma prática brutal contra as mulheres. Não é sobre defender essa ou aquela opinião. Mas relatar e expor uma história com a qual todos possam se sensibilizar e ampliar sua visão sobre o que se faz em nom...