Corações de Tecido

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Essa é uma brega história de amor. Brega como tem de ser uma história de amor profundo, amor quente como o coração da Terra, amor de magma, amor verdade. É um amor que reverbera cada batida de coração num barulho ensurdecedor que preenche sua mente com o próprio amor. É amor latino. Porque esse amor, que começa em linhas e se cruza tantas vezes até virar tecido que depois é rasgado e apenas lembrado como retalho, entra no seu corpo como troca alveolar, e é distribuído por todos os tecidos do seu corpo e se torna venoso, venenoso, pronto para ser renovado. Por isso amor não pode ser infinito. Amor é finito por sua intensidade, condensada na brevidade aguda dos momentos vividos. Qualquer coisa infinita não é amor. Quem acha que amor é "paciente e benigno" e groselhas do tipo nunca amou. Quem ama como Scarlet O'hara ou Harry e Sally nunca entenderá as canções de Julio Iglesias, Maysa ou Zezé de Camargo. Mas não vim aqui te explicar o amor, vim contar uma história brega: a minha.

Nunca pensei em morar no litoral, mas o amor faz com que nossas vidas tomem rumos inesperados. Cheguei cedo no centro de Santos e pude ver toda a movimentação de preparação da Ação do Coração. Durante o ano, voluntários confeccionam corações de tecido que no dia do evento são trocados por quilos de alimentos para instituições de caridade. Fiquei sabendo de sua existência depois que uma suposta justiça cega e petrificada me confinou por amar demais. Sei que é injusto querer que Têmis entenda Afrodite, e foi esse exílio forçado que me pôs em contato com voluntárias que iam ao presídio nos ensinar a fazer os corações de tecido. Eu precisava extravasar meu amor e, com uma agulha escondida, marquei cada coração que fiz com meu sangue, para que aquele coração não apenas representasse o tal amor diluído dito caridoso, mas que eles contivessem ao menos gotas do amor verdadeiro. Essa foi a verdadeira caridade que eu fiz, espalhar um sentimento intenso entre as pessoas.

Aos poucos os coraçõezinhos na praça formavam grandes corações. Seria difícil encontrá-lo. Todos os voluntários usavam a mesma camisa e os participantes começavam a formar filas, transformando em malhas aquele mundo de gente. Fiquei imaginando seu sorriso de surpreso ao me ver depois de tanto tempo. Entregaria um coração a ele olhando em seus olhos, para ver o momento em que ele perceberia que ainda me amava, que nosso amor foi renovado. Na mesma intensidade que eu o amava, uma conhecida amava o dinheiro. Ela me contou que ele estaria lá sem a odiosa mulher com que ele casara. A feiticeira Odile que me tornou Odette e me fez chorar mais que a Maria do Bairro. Seu feitiço foi tão forte, que sabia que teria que agir rápido dessa vez se quisesse o desfazer. Empunharia a adaga forte e agilmente em meu coração, entregando-o literalmente, num ato de coragem entendido pelas Julietas e Romeus que passaram por esse mundo. Em alguns momentos imaginei se deveria fazer o contrário, arrancar o coração dele para que pudesse ser meu, impedindo que qualquer outro amor glacial pudesse petrificar seu coração, mas isso me faria ser Raquel aos seus olhos, e eu sempre fui Ruth. O meu sacrifício é que quebraria a maldição e nos faria amantes novamente, mesmo que em outro mundo. Talvez os que vissem de longe pensassem que foi um ato desesperado. Pobre tolos sem faísca. Não seria, tudo estava perfeitamente desenhado como um tecido adamascado.

Já havia uma multidão entre os corações na praça quando eu o vi de longe. Ele não estava sozinho. Estava com uma garotinha de uns três, quatro anos. O nariz e o sorriso não deixavam dúvidas que era filha dele, mas aqueles olhos... olhos azuis polares como os da mãe. Aquele sentimento gélido e inerte deles gerou uma vida, algo que eu nunca tive a oportunidade. A menina brincava entre os corações com duas senhoras mais velhas, também voluntárias. Fiquei observando de longe e pensando no destino do coração daquela garotinha. Era possível que viesse a amar da forma insípida e mecânica como a mãe amava, e nunca conheceria o amor magma. Era possível que tivesse o amor vulcânico como o seu pai teve por mim, e sofreria as mesmas consequências que sofro por tentar amar em um mundo concretado. Talvez a maior prova de amor que eu possa dar a ele fosse o coração da própria filha, coração de cetim branco imaculado, livre de todo o sofrimento desse mundo, sem decepções, amarguras inseguranças e inquietudes. Garantiria que ele só teria boas lembranças da menina, mesmo que ele não fosse capaz de reconhecer meu gesto no momento, amores intensos também requerem abnegação e eu sei que um dia ele entenderia o significado profundo do meu gesto.

Observei que ele falou algo para as senhoras, e se afastou para a fila de uma barraquinha que vendia água e refrigerantes. Meu coração parou de bombear sangue por uns segundos quando me dei conta de que aquela era a oportunidade. Fui me aproximando calmamente da menina, a multidão formava linhas e tecidos que me protegiam dos olhos de seu pai. Já estava com o punhal escondido dentro da minha bolsa quando agachei ao lado dela. Ela virou lentamente, e me entregou, com um sorriso terno, um coração de tecido azul com linhas douradas. O presente tinha uma pequena mancha, quase imperceptível a outros olhos. Uma manchinha seca perto da base. Tão pequena, tão seca, tão viva, olhos glaciais vivos mas inerte, manchinha vermelha, sorriso quente. Comecei a tremer e apertei com força o punhal, sangrando a minha mão esquerda. Aqueles olhos glaciais e aquele sorriso mortífero liofilizaram meu coração magma. Todo aquele amor que eu ainda tinha foi rasgado, evaporou, finito, ao receber o amor que eu mesma havia depositado naquele coração. E a breguice está no renascimento do amor. Ao mesmo tempo que acabou o amor por aquele homem, ao receber de volta meu próprio sangue, recebi meu próprio amor, amor-próprio enlouquecido, apaixonado, apaixonante, incontrolável, radioativo, desmedido, irracional, fervente e brega. E esse amor quer ser amado.

E no momento mais incauto, nasceu outro amor. Aquele coração quente, só teve ebulição ao me ver. Antes seus olhos o comandavam. Como não amar aquele coração fumegante, que devolveu meu próprio amo? Quando o pai dela, de longe, já corria desesperado em minha direção, agradeci com um abraço o coração ganhado, virei de costas e voltei a ser linha na multidão tecido. Voltei para casa com a alma enternecida. Preciso salvar o coração fervente dos olhos de icebergs. Preciso unir meu sangue do punhal a aquele coração. Um dia, a menina me sorrirá quente de novo ao ver seu coração em minhas mãos. Não tenho pressa, o amor não tem pressa. Bate tranquilo até encontrar seu destino. O rubro coração, vertendo em gotas vermelhas o amor em minhas mãos.

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