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"Se olho para essas lajes, vejo nelas gravadas as suas feições! Em cada nuvem, em cada árvore, na escuridão da noite, refletida de dia em cada objeto, por toda a parte eu vejo a tua imagem! Nos rostos mais vulgares dos homens e mulheres, até as minhas feições me enganam com a semelhança. O mundo inteiro é uma terrível testemunha de que um dia ela realmente existiu, e eu a perdi para sempre. "
— O Morro dos Ventos Uivantes —
Lester respirou fundo.
Sentira falta do sabor do ar — amargo, por vezes cítrico. Nenhum canto do mundo o recebia tão bem quanto Londres, com seus becos estreitos onde um dia o judeu Kosminski se esgueirara, executando suas perversidades durante o outono vermelho. Sempre fora assim. Whitechapel era como uma mãe para ele, paupérrima e por vezes cruel, mas uma amada progenitora sempre o recebendo de braços estendidos, acolhendo-o em seu seio. Sua adorada terra natal estava muito diferente agora; havia fantásticas pichações multicoloridas, construções imponentes e modernização de todos os tipos. A imundície, a praga e a peste que um dia a assolaram só poderiam ser rememoradas nas terríveis imagens contidas em livros desgastados pela ação do tempo. Agora, as ruas estavam cheias de arte espalhadas ao longo dos muros, abarrotadas de cidadãos multiétnicos e entusiasmados com suas feiras de rua onde se podia encontrar bugigangas de todos os tipos. Ainda assim, ele gostava de como algumas casas e construções ainda conservavam os valores de sua época. Do ventre humano, nascera no século XIX, no dia 20 de agosto de 1866. Para as artes da Noite, no dia 24 de novembro de 1888.
As fachadas atuais das construções seculares ainda preservavam as cicatrizes da época de miséria ignorada pelos chefões de Londres. Cada uma daquelas rupturas silenciosamente comunicavam o horror vivenciado naquela época. Recordou-se de como, anos depois, a Segunda Guerra Mundial devastara o East End. Ele, um vigoroso rapaz em seus eternos vinte e dois anos, alistara-se para lutar contra o maldito exército nazista. Ocorreu a Lester que todos os momentos hediondos pelos quais sua amada Londres passara simbolicamente representavam sua tragédia particular. Ele tivera seu momento de miséria, um órfão jogado à sarjeta, para crescer então como um homem cambaleante e embriagado perdido entre as ruas fedorentas, sempre arrastando os pés até o bordel mais próximo ou a espelunca que servisse vinho no inverno.
Inverno.
Essa estação sempre protagonizara os momentos mais significativos de sua existência; seu nascimento para o Submundo, a primeira vez que desonrara seu Clã em nome de uma paixão devastadora, a perda da mulher que amava e, por fim, sua volta permanente à terra natal. Agora, seu amor transformara-se em um mito, e só lhe restava crer em sua existia, o que não era um grande problema. A presença dela, o tangível fantasma que lhe perseguia onde quer que estivesse e do qual jamais poderia fugir, era uma companhia permanente. Tragou em seu cigarro. Encontrava-se no cume da Torre do Relógio, observando a porção de águas escuras muitos metros abaixo. Contemplar o Tâmisa sempre lhe trouxera certa paz, esperança. Sentia-se revigorado, uma mariposa negra saindo do casulo pela milionésima vez. Perdera as contas de quantas vezes se aventurara até aquele lugar nos últimos dias. Dezenas? Centenas? Não fazia diferença. Eterno era só um termo mais bonito para amaldiçoado. O simples vocábulo perpetuava sua execrável condição, a vastidão de emoções tétricas prometendo o esmagar continuamente. Ao seu redor, as pétalas brancas dançavam ao ritmo da álgida brisa. Erguendo a palma, ordenou uma lufada a beijar os lábios negros das águas do Tâmisa. Um manto de veludo alabastrino forrou o rio gracioso, dando vida à simbólica representação da compleição do Imortal, do que se achava em seu âmago.
O inverno em Londres nunca fora tão rigoroso.
Visto de baixo, o Nosferatu deveria assemelhar-se a uma estátua, talvez uma gárgula de mármore branco que olhava por seu adorado templo. A única movimentação provinha de suas vestes impróprias para o clima. Inspirou a fumaça do Marlboro vermelho. O odor acre trazia à tona os registros de seus sentidos. Os cabelos dela, uma mistura dicotômica entre nicotina e rosas vermelhas. Por ironia, o isqueiro dela possuía intrincadas rosas com caules espinhentos entalhas em alto-relevo na superfície. Contemplativo, observou um dos únicos pertences dela que trouxera consigo.
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Do Sacrifício à Ascensão - Trilogia O Círculo dos Imortais Vol. III
Mystery / ThrillerTerceiro volume da Trilogia O Círculo dos Imortais