Conto do Apagão

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- Como pude dormir tanto? - Markus não pôde acreditar que já se passavam das três da tarde quando checou o relógio. Tratou logo de se levantar, foi até a janela, e com toda a animação de um primeiro dia de férias, abriu o tapa-sol. - Está tudo escuro a essas horas?! - Boquiaberto não conseguia ver logica no que via - ou melhor, no que não via. A escuridão havia engolido toda a cidade, que naquele momento estava apenas sob a vigia da iluminação artificial das luminárias no alto dos postes. O céu era uma imensidão escurecida, sem o mínimo vestígio lua, de estrelas ou nuvens.

Ainda de roupão, Markus saiu porta afora, seus olhos percorreram todo o horizonte. Não conseguia enxergar muito, mesmo a sua visão já acostumada com o breu. Nos arredores, murmúrios. Crianças brincavam, os vizinhos reunidos, especulando teorias conspiratórias. Nas janelas, sombras curiosas e receosas - Puta que pariu - Markus arregalou os olhos - Não pode ser isso, não agora.

Markus era um homem que beirava na casa dos 29 anos, quase trintando. Sempre muito curioso. Era peculiar a sua forma de pensar. Buscava logica em assuntos complexos e assustadores. Extraíra tudo que sabia de livros. De arcaicos a contemporâneos. Mantinha tudo meticulosamente ordenado em seu escritório. Tinha uma retórica incrível sobre o inicio de tudo, sobre o universo, sobre os planetas e, inclusive, sobre o fim.

Entrou em casa, foi direto ao escritório. Abriu seu notebook e tentou conexão via Skype com alguns cientistas, Astrônomos e Geólogos que ele tinha contato - SEM SINAL DE INTERNET? - Assustou-se. Começou a caçar livros, o desespero já lhe dominava. Abria, foleava, fechava e jogava de lado. - Deve estar aqui. Em algum lugar. Sei que está! - Sussurrava para si mesmo. Tentando acalmar-se. Convencer-se. Negando os fatos daquilo que já sabia. - O sol apagou! - Confessou.

Sabia que aquele cenário só seria possível dali há mais ou menos sete bilhões e meio de anos, mas de alguma forma o sol se ausentou de sua existência no universo. Não havia explicação, mas, de alguma forma, quis acreditar na sua ignorância. Saiu de forma abrupta de dentro de casa, precisava de ar. Com o peito soltando, ofegando foi a procura de informações. - O que aconteceu? O que está acontecendo? - Perguntou-se. Procurou os vizinhos aos redores. Conversou com uns e outros. Mas nada adiantou, as rodas de conversas só especulavam teorias conspiratórias. O fim já havia começado e as pessoas já enlouqueciam. Estava exausto de tentar encontrar apoio neste mar de confusão no qual se via afundar. Estado de torpor. Sentou-se na grama para se acalmar. O contato com o verde era a sua calmaria, o seu refúgio. Olhos fixo na grama preta. Ergueu por um momento, a rua de repente mostrava-se sombria. O que ele poderia fazer agora.

Markus despertou na grama do seu jardim, tudo escuro. Os olhos não ardiam com a claridade, como de costume. Abriu os olhos, enfim, mas o escuro permanecia ali. Levantou-se, procurou o celular. - Merda. - Estava desligado. - Lançou-o o mais longe que pode. Ouviu-o quebrar em pedaços no asfalto. Se deu conta que só ouvia a sua própria respiração. Percebeu também a companhia da escuridão e do silêncio. Precisava pensar no que fazer, sentiu o estomago roncar. O supermercado ficava a duas quadras dali. Pegou o carro, ligou o farol. Dirigiu a 10 km/h, tenso, observando os arredores. Chegando no mercado, outro cenário assustador. Lembrou o caos que lera em O Nevoeiro, de Stephen King. Fechou os olhos, mas do que adiantaria se eram os choros, as lamentações, os gritos e as discussões que o deixava com os nervos à flor da pele? - Estocar mantimentos - Tentou se acalmar - Pegar. Pagar. Ir embora. - Tentou focar. Entrou com um pequeno carrinho no supermercado, pegou algumas coisas. Viu se jogando no carrinho bebidas alcoólicas, maços de cigarro e tudo quanto era tipo de comida enlatada, que aliás, odiava. Saiu por onde entrou, em direção ao carro. Ninguém o parou. Entrou no carro, colocou a chave na ignição e tomou o seu rumo.

Algumas semanas se passaram, e em seu rosto a barba crescia. Ainda tinha comida para alguns meses, mas Precisava de frutas e verduras. O local ficava a cinco quarteirões dali. De longe já viu a placa: FECHAMOS. Hortifrúti era uma venda administrada por um casal de idosos, que cuidava da sua horta com o maior cuidado possível. O lugar era deslumbrante, era um mar verde. Markus saiu de seu carro às pressas, levando consigo uma lanterna. Chamou os SR. e a SRa. Silveiros uma dúzia de vezes, em resposta o eco de sua própria voz. Entre abrindo a porta que estava encostada. Andou além do caixa, saindo pelas portas dos fundos, rumo a horta. Não enxergava nada. - Liga, porra, liga - Bateu três vezes na lanterna. - Isso! - Conseguiu acende-la, trocando o botão para iluminação intensa e apontou para horta. - MEU DEUS! - O que via o deixou de boca aberta. Tudo estava murcho, ressecado. Sem nenhum sinal de uma verdura se quer que pudesse ser aproveitado.

Assim como o tempo, as notícias voavam. Mesmo após alguns meses à frente, algumas coisas permaneciam intactas. Seja pelos vizinhos mais fofoqueiros, as más notícias repetitivas dos jornais e até toda aquela escuridão - entenda das mais diversas formas. Em uma noite qualquer, não falaremos de datas, o tempo se perdeu fazia seis meses, Markus repousava na janela. Naquele momento fumava um Black, o terceiro dos últimos dez minutos. O cigarro tornou-se um hábito que ele desenvolvera de um mês para cá. - Antes viciado a neurótico - filosofou, fitando carinhosamente a fumaça que jogava no ar. Pela janela ouviu gritos. Uma vizinha histérica gritava que todos estavam mortos. Os berros foram substituídos por choros. Afastando o cigarro da boca, entre os dedos - Caralho! - Praguejou, meio boquiaberto, assustado. O alarde pela ausência do dia, jardins simplesmente secaram. A falta do calor solar, dos raios ultravioletas que seria essencial para a sobrevivência do ser vegetal ficou prejudicado. Consequentemente outros seres vivos foram atingidos por esse desastre. - Para muitos é o fim dos dias - Falou para si mesmo. - Mas para mim, um covarde... - Confessou e caiu no silêncio reflexivo.

Como se a pele do seu peitoral rasgasse, Markus levantou da cama - AHH! - O berro saiu como um sussurro, em meio a uma intensa fumaça de frio. Olhou ao redor, calendário marcava 350 dias após o apagão. Levantou da cama, não entendendo aquele frio, ou não querendo acreditar, colocou seu sobretudo, vestiu meias grossas e seu coturno. Desceu as escadas devagar, apontando a lanterna para cada canto do papel de parede daquela casa, analisando tudo, sua escada dava diretamente na porta. Abriu e sentia milhares de vidros cortarem o seu rosto. Nunca sentiu um vento tão cortante, nem nos invernos mais rigorosos que vivera. Espremeu a visão, o cenário era sombrio para variar. Era noite, como a maioria desde que se lembra, porém acinzentada. A neblina era intensa, mesclava entre o preto da escuridão dos dias atuais, o meio branco meio cinza da neblina e o laranja vindo do alto dos postes, que incrivelmente mantinham-se acessas incessantemente.

Não conseguia enxergar nada com precisão, nada era nítido. Lembrou-se que apesar da escuridão que envolveu toda a cidade, era possível ver as coisas. Voltou para dentro de casa, ligou a televisão, que desta vez exibia um alerta de fora do ar. Desligou-a. Se aconchegou diante da lareira. Serviu uma taça de um vinho seco, o seu favorito. Tomou um gole, dois. Foi-se a taça, a garrafa. Acendeu um cigarro, dois e três, um maço inteiro. Deitado no tapete de camurça, a cabeça aconchegada em almofadas de pelúcia. Percebeu, de repente, que a lareira perdia sua força. Seu corpo acompanhava, não conseguia mexer as pernas, como se estivessem congeladas. Mas ao longe avistou algo reluzente a capa de um antigo livro, então lembrou-se de alguns acontecimentos relatados nele. Em meio ao seu devaneio, Adormeceu.

Acordou aos poucos, a lareira ainda estava ali, fazendo companhia. Não sabia quanto tempo se passou. Horas, dias? Não soube dizer. Sabia, porém, que esse era o seu fim, não adiantaria lutar contra. Aliás o seu querer era que tudo acabasse logo. Ouviu barulhos, algo ou alguém subindo as escadas. Três homens com roupas pretas estavam de joelhos próximo e ele, não conseguia entender, mal era capaz de formar um raciocínio claro. Os homens estavam ali, ou eram apenas fruto de sua imaginação. Parecia que faziam algo, mas não sentia seus toques. Os homens escureciam, atrás deles algo crescia, um pequeno claro que ganhava brilho, de um laranja escuro e ia clareando através da janela. Sorriu serenamente e apagou totalmente. Ouvia apenas uma voz ao fundo, distante - Alô tenente? Temos um único sobrevivente. Ainda tem um sobrevivente - o homem esperou o retorno no walktalk até que veio a resposta após um bip - Copiei. Traga-o pra mim. Talvez ele sobreviva ao treinamento.

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⏰ Última atualização: Mar 12, 2017 ⏰

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