Capítulo II - Fabiano

457 3 0
                                    

FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava
no aió um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal,
teria feito o curativo ordinário. Não o encontrou, mas supôs
distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois
gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto,
voltaria para o curral, que a oração era forte.
Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência
tranqüila e marchou para casa. Chegou-se a beira do rio. A
areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas
dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe
pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A
cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a
direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas
o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados
mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas,
afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a
reproduzir o gesto hereditário.
Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama
rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A
lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.
A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado,
procurando na catinga a novilha raposa.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara
naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo
raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois
tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos
tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos - e a
lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta,
esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo,
picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao
binga, pôs-se a fumar regalado.
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza
iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não
era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos
outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e
os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de
animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos
brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém
tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a,
murmurando: - Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho,
capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até
gordo, fumando o seu cigarro de palha.
- Um bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto,
passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de
mucunã. Viera a trovoada.
E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano
fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos,
resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito
que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as
marcas de ferro.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali.
Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas
criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os
mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso,
era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinha Vitória,
os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.
Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo
do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os
braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia!
Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para
baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela
seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor,
hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao
curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha
abrigado uma noite.
Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos,
veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu
a carícia, enterneceu-se - Você é um bicho, Baleia.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus
pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da
terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.
E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que
o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem.
Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e
feio. As vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma
língua com que se dirigia aos brutos - exclamações,
onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras
compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir
algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez
perigosas.
Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer
coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta
a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho
desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito
curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o
que não era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o,
vexado: - Esses capetas têm idéias ...
Não completou o pensamento, mas achou que aquilo estava
errado. Tentou recordar o seu tempo de infância, viu-se
miúdo, enfezado, a camiSinha encardida e rota acompanhando o
pai no serviço do campo, interrogando-o debalde. Chamou os
filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessá-los.
Bateu palmas - Ecô! ecô!
A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e
quipás, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos
voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a,
afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era
bom eles saberem que deviam proceder assim.
Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou
à ladeira que levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no
olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um
buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela
perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao
gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se
morresse, não seria por culpa dele.
- Eco! ecô!
Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As
crianças divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano
se destoldou. Aquilo é que estava certo. Baleia não podia
achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente
que os meninos se acostumassem ao exercício fácil - bater
palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do
animal. A cachorra tornou a voltar, a língua pendurada,
arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a
lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que não fora
ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho
medonho.
Agora queria entender-se com Sinha Vitória a respeito da
educação dos pequenos. Certamente ela não era culpada.
Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as
panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e
regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no
barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam
perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a
ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
- Está aí.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e
nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão
o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só se
era porque lia demais.
Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: - "seu Tomás,
vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça
chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros." Pois
viera a seca, o pobre do velho, tão bom e tão lido,
perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o
couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão
puxado.
Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu
Tomás da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda,
montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros
semelhantes descobriam-se. E seu Tomás respondia tocando na
beira do chapéu de palha, virava-se para um lado e para
outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com
remendos vermelhos.
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia
palavras difíceis, truncando tudo, o convencia-se de que
melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como
ele não tinha nascido para falar certo.
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em
cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia.
Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo
censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele.
Ah! Quem disse que não obedeciam?
Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por
exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda,
só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava,
o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro.
Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia
as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do
braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente
jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo
só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha
dúvida?
Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido
quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo
de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de
couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o
substituísse.
Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu
Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não
contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter
luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os
botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada,
dormiriam bem debaixo de um pau.
Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a
seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se.
Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que
ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer,
sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins. A
desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a
pena trabalhar.
Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando
seixos com as alpercatas - ela se avizinhando a galope, com
vontade de matá-lo.
Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu-
se. Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver
terras, conhecer gente importante como seu Tomás da
bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar
com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la.
Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro,
lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a
cabeça levantada, seria homem.
- Um homem, Fabiano.
Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não,
provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida
inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na
fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria
tão cedo. Passara dias sem comer, apertando o cinturão,
encolhendo o estômago. Viveria muitos anos, viveria um
século,. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um
touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado,
exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem
cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar
brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem,
teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que
lhe servira tanto,livro, tanto jornal? Morrera por causa do,
estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo
andasse direito. .. Seria que as secas iriam desaparecer e
tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que
devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos
poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos.
Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia
deles.
Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas
pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos
batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava
arquejando, a boca aberta.
Aquela hora Sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada
junto à trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas,
preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois
da comida, falaria com Sinha Vitória a respeito da educação
dos meninos.

Vidas secas Onde histórias criam vida. Descubra agora