Volta e meia, ela está em minha porta
Eu a expulso, mas ela sempre volta
Digo-lhe 'Vá embora, não a quero agora'
Mas volta e meia ela está em minha porta
Eu, sádica, atrevo-me a espiá-la pelo vão da fechadura
Sua tez cintilava na calada da noite escura
Sim, à noite. É quando ela vem.
Assombra-me quando estou sozinha, sem ninguém
Outrora, quando eu, fraca, supliquei
'Leve-me contigo, por favor' implorei com avidez
Desdenhou de meu pedido, negou-me seu abrigo
E o que a faz voltar agora? Juro, eu não sei
Está aqui, novamente, pronta para me tentar
Alimenta minh'alma com as promessas que me dá
Onze e meia em minha porta querendo adentrar
'Não a quero, vá embora, não a deixarei entrar'
Na rude tentativa de permanecer sã
Fito as brechas da janela esperando o amanhã
Este que talvez nunca chegue outra vez para mim
Com a Morte em minha porta, me espreitando assim
Sim, eis ela! Eis minha lúgubre visita
Visita voraz, que acolhe, que abriga
Aquela a qual, para outrem, a chegada irrita
Para mim, a Morte, é como uma velha amiga
'Em breve, eu sei, iremos nos encontrar
Pelo acaso, pela doença, pelos pulsos que hei de cortar
No entanto, entenda, ponha-se no meu lugar
Pela primeira vez na vida estou disposta a tentar
Mas a Morte é instigante, ela sabe provocar
É o mistério mais sabido que ninguém ousa desvendar
Seus sussuros solenes assemelham-se à canções de ninar
'Você está cansada e devastada, não precisa mais tentar'
Ao prelúdio da madrugada, minha força se esvai
A cálida usura da Morte me perscruta e me atrai
Toco a gélida maçaneta, abro a porta devagar
Estou cansada e devastada, não preciso mais tentar.
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Coletânea: Dos delírios
PoetryDevaneios de noites jamais dormidas, inquietude de sonhos jamais sonhados.