I
Chovia forte lá fora e o breu noturno era assustadoramente opaco, como os olhos vendados pelo manto do acaso, a olhar para o futuro. A noite apagava qualquer traço que pudesse desenhar alguma forma nítida no espaço. Do lado de dentro, ele permanecia olhando para o vidro embaçado, sem se mexer. Não se via nada além de seu próprio reflexo pensativo, de olhar distante, perdido no som das gotas caindo torrencialmente. Sentia-se paradoxal: Estranho e sereno; Angustiado e calmo. Rompendo o caótico murmúrio da chuva, uma distinta voz feminina lhe perguntou:
– No que pensas?
– Em nada. Estava naquela espécie de transe hipnótico, na qual nos colocamos quando fixamos o olhar em um ponto e deixamos divagar a sensação, sem apercebermo-nos dela. – Respondeu-lhe ainda olhando para o vidro embaçado de noite e água. Agora, porém, notava a noite, a água e o ruidoso barulho da chuva. Em seguida, virou-se à elegante dona daquela voz. Era uma esbelta mulher, branca, quase pálida, de finos e joviais traços a contornar seu rosto, de maçãs proeminentes e nariz afinado. Tinha os lábios não tão finos e nem tão carnudos, e, de todo modo, rosados. Possuía belos olhos castanho-claros, quase avermelhados, como pedra de Jaspe, e longos cabelos escuros a lhe descer por todo dorso curvilíneo.
Fitou-a agraciado. Admirou a beleza do seu corpo, trajado naquele longo vestido preto que ia até o tornozelo e dava àquela bela mulher um semblante tão puro e casto, quanto sedutor e convidativo. Não a comparava com uma ninfa, nem com uma sereia, princesa, ou qualquer outra figura feminina de exuberante aparência. Não conhecia algo com o qual a pudesse comparar. Era uma beleza feminina singular, como que dotada de uma quintessência desconhecida pela imaginação humana. Também não a despia com volúpia em seus pensamentos. Ela o acometia de sensações outras, das quais ele nada vivera ou sentira. Contudo, limitava-se a olhá-la, ao passo que ela o correspondia com sorrisos singelos. E, novamente, irrompe dos femininos lábios rosados outra descontinuidade:
– Ao dissolver-se a noite, entristecer-nos-emos quando a aurora trouxer o amargo gosto de um desejo, mantido preso por olhares imóveis?
– Seria fazer da aurora um segundo crepúsculo. O que queres fazer?
– Vejo-te vistoso e me despertas vontade de dançar.
– Pois, dancemos – E foi-se aproximando da sua parceira.
A pouco menos de um braço de distancia, ela pousou sua mão esquerda no ombro direito daquele homem. Posicionou o braço direito de seu parceiro na sua cintura. Deram-se as mãos e ela, rindo, disse:
– Para ousar desafiar o esbravejo da chuva, uma suave dança.
Puseram-se a dançar, primorosos, como num baile de um salão vitoriano. Rodopiavam e atravessavam todo aquele pequeno salão, de formato retangular, iluminado, com assoalho de madeira e duas janelas de vidro arredondadas, simetricamente dispostas numa das paredes de maior tamanho. A chuva ainda declamava um estrondoso som. Era como se o salão estivesse localizado no interior de uma cachoeira. O barulho, contudo, não era mais tão incômodo. A dança havia suavizado a inquietude auditiva. E iam e vinham, harmoniosamente, num compasso por eles marcado "um... dois... três... quatro...".
Enquanto dançavam, ele sentiu uma estranha vontade de contar àquela dama toda a sua vida, não como numa confissão, porém, como numa retrospectiva. Matutou algum esforço com a memória para puxar a mais longínqua lembrança. E principiou por relatar-lhe alguns fatos confusos de sua tenra infância. Na medida em que avançava o tempo da narrativa, reações múltiplas agitavam a sintonia entre aquele par de dançarinos. Ora, ruborizava a face por alguma lembrança cômica e constrangedora. Ora, sentimentos pesados em seu peito alteravam o tom de sua voz. Ou então, envergonhava-se a ponto de engatar a fala. E aí, virava o rosto, esboçava uma sutil expressão de riso, ou de tristeza, quem sabe, de culpa. Em alguns momentos, chegou a desandar o ritmo da dança. Desculpava-se com sua acompanhante, que muito habilmente desembaraçava-o. Com duas ou três frases acalentava-o e o fazia recuperar a compostura e insistia para que continuasse o relato. Às vezes, gaguejava quando o assunto lhe era muito delicado. Em outras, gracejava e gargalhava. Não só ele gargalhava. Aquela admirável mulher o acompanhava nos risos que cismavam em transpor o decoro e esbanjar alegria infindável. Apercebendo-se disso, sentiu-se ele mais à vontade. Gracejava mais. Alegrava-se mais. E mesmo das lembranças tristes e dolorosas, tentava mostrar a que veio contribuir em sua vida. Reconhecia erros, faltas, arrependimentos e troçava, vez ou outra, de uma falha de caráter, de uma saudade, de uma impotência, de um excesso.
O céu trovejara forte e a chuva aumentou seu brado intimidador. Quando ele se deu conta que a tempestade tornava-se mais intensa, suspirou descontente:
– Eu ainda queria voltar para casa. Tinha esperanças...
– Por enquanto, desta feita, parece que teremos que passar a noite aqui. Importa-te? – Indagou a sublime mulher.
– Um pouco. Deixei tantas coisas por fazer.
– No entanto, nada há para fazer por esta chuva e não podes sair. – retrucou a dama e prosseguiu – Conta-me mais, por favor, sobre tua história.
– Tratas-me usando o "tu" e, no entanto, é a primeira vez que te vejo. Não me recordo de ver-te antes. Mas, ah! Fui encantado! Estou também usando o "tu" como se fôssemos grandes amigos!
Riram. Ao fim da descontração, a mulher lhe disse:
– Talvez o sejamos. Sinto que te vejo há tempos, por toda a tua vida, como se te acompanhasse pela mão.
– Então, não estou a revelar-te nenhuma novidade.
– Engana-te. A graça de uma história consiste em como se a conta e não o que se conta. Posso já saber os fatos. Porém, a maneira como me relatas, faz-me vive-los pela primeira vez como se fosse um mundo inexplorado.
Convenceu-o. Ele contou, então, mais alguns fatos e detalhes de sua vida. Não deixava de apresentar comentários críticos e algum juízo de valor sobre o que contava. Sentia-se bem para mostrar-se límpido e transparente em corpo e alma. Trocavam a posição das mãos e alteravam o ritmo dos pés, conquanto a narrativa estendia-se por muito tempo. Mais algumas lembranças e comentários bastaram para encerrar a narrativa com um final confuso. Respirou e exclamou para sua parceira:
– Creio que ouviste minha história por quase uma hora e, no entanto, sinto como se tivessem passado meses!
– A chuva nos entorpece a vista e o ruído não confunde só espacialmente. O bombardeio das gotas nos lança e relança nos confins de um inconsciente amorfo. Há quem saia numa tempestade para se perder nas brechas do tempo.
– Devo admitir que tempestades como esta, quase bíblicas, possuem efeitos formidáveis na percepção humana. À noite, é bem capaz de nos transformar num antro escuro de uma profundidade inalcançável, do qual saem criaturas tristes, asquerosas e angelicais que desfalecem em nós o tempo.
– Sentes-te assim? Um antro escuro e desconhecido?
– Depois deste longo relato, não mais. A propósito do que te contei, tenho sido, afinal, um homem bom ou um homem mal? – questionou sua ouvinte e, ao fazê-lo, sem o querer, exerceu maior pressão sobre a mão dela, a qual, antes, segurava de modo cortês, tal qual a dança o exigia.
– Não é a mim que cabe este tipo de julgamento. – Respondeu-lhe e acrescentou – A propósito, estivemos dançando uma valsa por todo esse longo período. Percebeste?
Ele sorriu. E, retirando-lhe as mãos e afastando-se dela para melhor contemplar as tênues e bem esculpidas feições daquele olhar que o fitava espirituosamente, disse:
– Não foi tão difícil quanto parecia nos salões europeus do século XVIII. Mas, estou cansado. A valsa adormeceu meu corpo.
–Dançamos mesmo por um longo tempo. É natural teu sono profundo.
– Deitas comigo? Preciso dormir. Devo dormir.
– Deito. Porém, peço-te, abraças-me quando deitarmos.
– Com afinco e delicadeza, como quando se nos oferecem uma oportunidade valiosa. Será a paz do meu sono.
II
Era madrugada, o céu diluviano persistia opulento. No interior do hospital, o monitor cardíaco acusava a última batida de um coração. Na emergência, os médicos desfibrilavam fortes descargas elétricas para salvar o paciente. Era o primeiro sinal que aquele homem manifestava em meses de coma. Apesar do forte empenho da medicina,a vida cessara. Nada mais podia ser feito. O falecido estava agora entregue a seja lá que exuberante mistério que circunscreve nossos passos como que conduzindo-nos por meio de uma majestosa valsa.

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Valsa
Short StoryExiste uma dança diferente de todas as outras porque, por mais que se saiba o compasso dela, a coreografia e se saiba dançar conforme o ritmo, não se sabe a que estilo de música pertence os movimentos dessa dança. Somente no final nos é revelado o q...