A primavera havia chegado demasiadamente cedo naquele ano. As folhas das árvores que caíram tão eloqUentes no outono, começavam a dar seus primeiros sinais de aparição. Ao olhar além das montanhas do vale, Blodeuwedd podia ver as águas caindo, ao derreter todo o gelo do solo e dos altos pinheiros. Sem dúvidas, aquela era sua estação preferida. Nada mais justo, já que sua existência devia-se às nove espécies de flores e ao capricho de um jovem deus.
Lembrar de Llew lhe dava calafrios e arrepios que percorriam todo seu corpo. Jamais esqueceria o seu olhar quando soube que ela o havia traído. Como pode? Era apenas uma criação para agradá-lo. Uma personificação de esposa perfeita. Era nesse último olhar do marido que Blodeuwedd conseguia alívio: a prova de que possuía vontades, desejos e liberdade. Embora a ideia de liberdade fosse apenas uma farsa, já que se encontrava ali, olhando através dos arbustos, sozinha e com a consciência de que ao cair da noite, seria um animal temido e, portanto, evitado pelas demais aves. Esse era seu fado, a solidão noturna e degradante.
Uma pequena gota d'água caiu sobre seu encaracolado cabelo branco, fazendo com que uma mecha rosa aparecesse de imediato. Lá estava os primeiros sinais da sua existência: as flores de carvalho. Esperava pacientemente que todas as nove aparecessem, para então conseguir aquilo que mais queria: vingança. Foi com isso que ocupou sua mente durante os últimos cinco anos, ao descobrir que o irmão de Llew –que todos achavam ter morrido afogado- estava vivo.
Pegou-se pensando consigo e até que achara engraçado o modo como descobriu que o cunhado -que nunca chegara a conhecer- vivia em um campo perto de onde passava suas solitárias noites. Estava lá como sempre estivera, vagando e augurando, quando uma ave azul -tão bela quanto a mais brilhosa e transparente água do único rio místico do vale- apareceu e deixou cair um pedaço de papel enrolado em uma fita de cor púrpura. A ave olhou bem em seus olhos por uns instantes, que pareceram décadas e então, sobrevoou sob a grande árvore dos sete magos.
Blodeuwedd de início se assustou com o que acabara de ocorrer. Nunca havia sido olhada nos olhos quando possuía a forma de coruja. No geral, as aves costumavam evitá-la, as pessoas ficavam aterrorizadas com seu canto e os animais terrestres a desprezavam. Depois de um tempo, despertou de seu transe e sentiu esperança. O olhar daquela ave foi mais que um cumprimento, foi um sinal de que ela não estava sozinha. Sentia-se boba por ter expectativas mesmo depois de tudo. Mas o que seria dela se apenas desistisse? As flores nunca desistem de brotarem, mesmo nos lugares mais improváveis.
Esperou pacientemente o sol aparecer no lado leste da grande árvore. Começou a sentir a transformação que sofria todos os dias: primeiro o cair das penas, então os calafrios pela exposição, em seguida o contorcionismo dos ossos e então a clara visão das montanhas. Era sua forma humana de novo. Olhou para o papel ao chão e sem pensar duas vezes o abriu. Lá, escrito com letras vermelhas e claras, estava:
"Dylan vive onde o sol se põe, a noite sempre alcança e as aves evitam."
Ela não podia acreditar naquilo que acabara de ler. Dylan havia se lançado ao mar quando sua mãe o abandonara. Ele não poderia ter sobrevivido. Mas então ela lembrou, seu corpo nunca havia sido encontrado. Lembrava de Gwydyon indo visitá-lo todo dia cinco de setembro, dia de sua morte. Mas ele o visitava no mar, não nos túmulos de Gyffes. Então algo se acendeu dentro dela. Se Dylan estava vivo, significava que ela tinha uma chance de vingança contra seu marido e seu criador. Apenas um sangue puro dos Gyffes poderia matar alguém da família, era esse o feitiço de proteção que Math havia feito logo após a sua traição, uma forma de garantir que aquilo jamais aconteceria novamente.
Naquela semana, Blodeuwedd partira em direção a Floresta dos Sonhos, onde a noite era longa como o dia. Ela sempre evitara aquele lugar, pois era a certeza de que passaria mais tempo como uma ave, mas isso não importava mais, iria fazer o que fosse preciso para conseguir o que queria. Lembrava de ter ido ali, nas primeiras noites de sua maldição, pois preferia ser uma ave abandonada. Não queria virar ela mesma de novo e lembrar do Gronw, pois a imagem de sua cruel morte não saíra de sua mente. Entretanto, por mais demorada que seja a escuridão da noite, o sol sempre volta a alcançar o horizonte. Ela apenas adiava o sofrimento, mas teve que aprender a conviver com ele.
Conforme atravessava a floresta, sentia um misto de emoções. Odiava o Gwydyon por ter criado-a, mas era a única representação de família que conhecia. Pena que às vezes você não é considerado com a mesma intensidade com que considera. Gwydyon lhe virou as costas no primeiro momento e se mostrara de fato como a pessoa egoísta e autoritária que era. Para ela, ele havia morrido há 30 anos, quando a fez chorar pela primeira vez.
Depois de dez dias vivendo apenas na floresta, desistiu de sua busca. Dylan não estava vivo, era apenas uma brincadeira de mau gosto de alguém que conhecia muito de sua vida. Tudo o que sentia agora era raiva e arrependimento. Olhou para o céu azul acima de sua cabeça e cantou, tão fortemente que as samambaias se encolheram e os pássaros voaram para o mais distante possível. Seu canto era de dor, de desejo, de rancor e de memórias que jamais poderia apagar. Foi então que uma seta em forma de nuvem se formou no céu, apontando para o lado oeste das montanhas.
Esperou pacientemente a noite chegar e, na sua forma de coruja, sobrevoou o céu e avistou além das montanhas. Lá estava: um campo verde, cheio de castanheiros e borboletas. Se Dylan estivesse vivo, aquele seria o lugar. Partiu em direção ao vale, novamente cheia de esperanças.

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Blodeuwedd: A vingança de uma deusa.
Short StoryBlodeuwedd foi criada a partir de nove flores e uns toque mágicos. Criada com o propósito de ser uma boa esposa e apenas isso. A verdadeira personificação de uma mulher. Entretanto, mesmo a magia é capaz de criar tal coisa? Seria ela totalmente devo...