Mais um dia eu cheguei do trabalho cansada e me joguei no sofá me despindo preguiçosamente da bolsa, dos sapatos, do coque apertado, blusa de frio e bijuterias. Observei, mais uma vez, as mãos cicatrizadas da velha mulher na cozinha, mexendo tranquilamente nas panelas enquanto entoava baixinho uma música religiosa. E de novo me peguei pensando no passado daquela mulher, de rosto maquiado e mãos calejadas, de postura ereta e pele marcada, de tão forte voz mas que cantava tão baixo. O passado de onde eu vim e que me livrei de ter como presente e nunca aceitaria futuro.
Calmamente ela veio até mim e me cumprimentou, depositou um beijo leve em minha testa e perguntou como foi meu dia. Como sempre, eu sorri e menti de que tudo estava ótimo, sem querer preocupar aquela mente já tão machucada. Voltei a observar ela cantando pela cozinha e novamente me peguei pensando naquelas cicatrizes que marcavam seu corpo. Como será que pensava nas tantas desculpas diferentes que dava, na época que as ganhara, para proteger o culpado de lhe causar todas aquelas dores, e não só as físicas, mas também as que a marcavam emocionalmente, que nunca seriam apagadas, pois estariam sempre vívidas em sua memória. Afinal, como ela poderia esquecer todos os tapas que a jogara no chão, todos os murros que cortaram seu rosto, os inúmeros puxões de cabelo que deixavam sua cabeça por dias dolorida, além das humilhações, os palavreados imundos que lhe eram dados como nome, as proibições e exigências ridículas as quais não podia fazer nada além de acatar com um falso sorriso no rosto.
E depois se maquiar, ajeitar o cabelo, colocar a melhor roupa e me esperar chegar da escola, logo me preparar, me vestir com cuidado, dizendo " ai, filha, não encosta aqui" quando eu, tão nova e desajeitada lhe tocava a pele dolorida.
E fazia isso todos os dias, e como se ainda não bastasse, a noite era obrigada a sair de braços dados com ele, exibindo um sorriso frio e desfilando roboticamente pela cidade, como uma boneca de porcelana, linda mas de expressão congelada.
Hoje, eu a imagino, depois que voltava pra casa e se prestava aos serviços sujos do seu conjugue, sentada em frente ao espelho encarando aquele reflexo perfeitamente desenhado para a sociedade, e enxergando o que havia por trás dele; a pele ferida marcando cada discussão, os olhos vermelhos pelo choro desesperado de dor, o sangue vivo nas bochechas pela raiva de se encontrar em tal situação, a mulher que havia por baixo daquela fantasia de porcelana e que um dia se quebraria revelando sua alma esfolada por aquele que tão mentirosamente dizia a todos que a amava.
E me doía pensar que parte de tudo aquilo que ela enfrentou fora pra me proteger, para evitar que aquelas cicatrizes marcassem a minha pele. Ele era um crápula nojento, mas nunca colocou as mãos em mim, na verdade agia como se eu fosse invisível, um peso morto, lembrança constante daquele que desposara primeiro a doce mulher que ele surrava todo dia.
E quanta saudade será que ela sentia dele, o primeiro marido, o único amor, o pai de sua única filha, o homem que ela sempre descrevia como educado, sensível e corajoso, e que eu mal conheci, mas que curiosamente me dava a impressão de sempre estar comigo, me protegendo, me deixando invisível quando a atenção do "marido da mamãe" poderia se virar para mim, cantando doces canções para abafar os choros que vinham de todos os lados, como se saíssem de um fantasma lamuriando pela casa. E eu tão pequena e inocente não fazia ideia do que ocorria de verdade naquela mansão impecávelmente arrumada, assim como as mentiras contadas a quem vivia além daqueles portões.
E tantas mulheres ja passaram ou ainda passam por isso, as vezes por muito pior na verdade, que meu sangue se esquenta de raiva. Minha cabeça se aquece só de imaginar quantas mais bonequinhas existem por aí, escondendo a pele esfolada por trás da porcelana, tentando incubrir as atrocidades que sofrem, por medo do que pode acontecer de pior. E continuam cantarolando baixo, com receio de que alguém errado as escute, continuam maquiando a pele na tola tentativa de esconder completamente as marcas arroxeadas que se espalham por todo o corpo, e permanecem sorrindo sempre que alguém as observa, assim escondendo qualquer sofrimento visível aos olhos de alguém. Esse mundo não era justo para essas guerreiras. E não seria, enquanto os ouvidos de todos ao redor continuassem fingindo não ouvir os murmúrios de desespero que ecoavam por todos os cantos de onde houvesse essa situação.
O canto doce continuava vindo da cozinha, e sempre continuaria, enquanto houvesse força para aquela mulher cantar sua liberdade, e sempre haveria, depois de tudo o que passara, provou que sua força e esperança eram inesgotáveis. E orgulhosamente eu a observava, me lembrando do quanto ela lutara até se livrar daquele que nunca substituiria meu pai, que nunca cumprira suas falsas promessas de protege-la a todo custo, e que hoje se encontra sozinho, sem nenhuma companhia além do próprio dinheiro e imensidão de remédios que deve tomar para continuar sobrevivendo de forma infeliz, pois nenhum é capaz de curar a sua alma ja tão manchada com pequenas gotas do sangue dela.
Me levantei e segui lentamente até a cozinha, pronta para ajudar nos preparos do jantar e entoar, sem medo da altura, as canções que ela, tão baixo, ja cantava todos os dias.
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Boneca de Porcelana
Short StoryMãos marcadas, pele manchada, rosto cicatrizado, voz baixa. Consequências de um passado que nenhum ser humano deveria ter, cicatrizes impossíveis de esquecer. História escrita para o projeto EYMind de fevereiro e ganhadora do primeiro lugar do mesmo...