Inverno Negro - Cap 01

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Não consigo me lembrar muito bem do momento em que acordei. Nem mesmo escovar os dentes, arrumar pra ir à escola; sofrer um ataque epilético em plena aula... É tudo muito vago. E todas as vezes que penso sobre meu último dia na Terra me vem a pergunta a qual eu nunca soube responder:

– Você tem certeza de que é normal? – insistiu a madre superior mantendo os olhos azuis bem próximos aos meus. – Porque senão teremos que tomar maiores providências e... Olha, Calça Jeans, eu não quero a minha escola envolvida num caso como o seu.

Devolvi meu olhar mais apático para ela. Aquela freira velha mumificada. Ela não tinha o direito de zombar de mim como a maioria dos alunos fazia. Podia-se sentir na pele a aversão dela a calouros, ou pelo menos era o que diziam sobre ela. E, mesmo repulsiva, a velha me encarava de perto, me mirando como se eu fosse desmaiar novamente a qualquer instante.

– Já disse que estou bem, senhora. Isso acontecia direto comigo... é bem normal.

– Normal? – retrucou ela, erguendo as sobrancelhas cheia de altivez. – Isso pra mim é uma doença. E das sérias. Nunca vi um ataque epilético nesse nível em todo meu tempo neste colégio!

Pisquei e suspirei de forma irritada, me ajeitando melhor na maca. Ao me mexer, logo constatei a fraqueza que tomava meu físico. A luz natural da janela ao lado enchia o quartinho e expulsava aos poucos a preguiça de dentro de mim.

– Foi só um ataque epilético nível alto. A senhora disse. E o resto vocês já sabem – repeti as desconfortáveis palavras das freiras – Aí eu comecei a gritar e depois... me tremi no chão, fiquei com os olhos vermelhos e... enrolei a língua... – fui repetindo sem querer acreditar.

Não me lembrava de nada daquilo. As três freiras que cuidavam da enfermaria fizeram questão de me contar, quando eu acordei, tim-tim por tim-tim, tudo o que se passou nos últimos minutos; até que fossem expulsas da sala pela madre superior e coordenadora do Colégio São Martinho.

– Tá, e isso acontece sempre?... Menino, você tem rezado?

– Não é questão de rezar. Eu sofria disso quando criança. Fazia tempo que não acontecia... a propósito – expliquei refletindo sobre aquilo. Por que motivo o ataque tinha voltado? Tinha que ser logo agora, em plena aula? – Bom, já posso voltar pra sala?

Ela balançou a cabeça mantendo o olhar pensativo.

– Nem pensar. Você vai pra casa. Vai se cuidar. – A maca rangeu de leve enquanto ela se levantava. – Tem um bando de gente lá fora querendo saber o que aconteceu. Se a história se multiplicar por aí, o colégio terá que cuidar de pais insatisfeitos pedindo que seus filhos sejam afastados dos bolsistas doentes.

Franzi o cenho, indeciso. Ficar uns dias em casa e perder aulas me prejudicaria mais do que gastar meu dia rodeado daquele tanto de gente desinteressante que havia no colégio?

– E não me olhe com essa cara de calça jeans. Não quero saber de escândalo, nem de pais insatisfeitos, nem nada que manche a reputação do meu colégio. Você já deu muito trabalho pra um par de dias, ouviu, Calça Jeans? Então, se me der licença...

– Meu nome é Leonan – murmurei. Leonan... que nome ridículo. Como se todos os meus problemas não bastassem. Por que meu nome não poderia ser Leonardo? Talvez Leandro. Agora, Leonan? Esse nome é só mais um pretexto pra todo o mundo me encher a paciência. Pior ainda era Calça Jeans. Como é que aquela droga de apelido tinha se espalhado a ponto de ser repetido até pela madre superior?

A freira fingiu não ouvir meus murmúrios. Apanhou a pilha de papéis que tinha deixado sobre a mesinha e os envolveu com os dois braços sem nem mais olhar pra mim; parecia peso demais para uma senhora.

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⏰ Última atualização: Apr 27, 2016 ⏰

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