Somente Uma Vez

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Somente Uma Vez

Do alto do camelo a princesinha seguia adiante num movimento marcado pela oscilação para cima e para baixo, um movimento suave, compassado, como se estivesse num barco flutuando, indo embora nas ondas do mar. Às vezes ela inclinava-se um pouquinho para a direita, quase nada, depois endireitava. Ia um pouco curvadinha para a frente. Trajava um vestidinho de fazenda leve de um xadrez tão tênue que nem dava para ver direito. Predominava no tecido o branco que por causa do xadrez adquiria um tom mais ou menos gelo. Tinha os cabelos claros relativamente longos, pelos ombros, ondulados. Deveria ter uns três anos de idade. Ia quietinha. Era de noite, e a caravana seguia em silêncio pelo deserto do Sahara. O camelo ia ganhando distância prosseguindo viagem naquele universo carregado de mistérios, de lendas e de um certo número de oásis não tão evidentes, onde as lembranças se perdem em meio à imensidão e às tempestades de areia.  

Cumpre dizer, não era um camelo, mas sim o próprio rei quem levava a princesinha a cavalo por sobre seus ombros.  

Na verdade nem era um rei, era um pai comum. E não era uma caravana, iam só os dois. Não era no deserto, era no estacionamento do supermercado. Foram seguindo pelo trecho coberto do estacionamento. Caía uma chuva torrencial. O pai levava a garotinha às costas, nos ombros e segurava as sacolas de compras nas mãos. No chão ligeiramente em declive a enxurrada corria. A menininha não se importava nem um pouco com a altura e ia quietinha com um ar de confiança total no pai e cumplicidade tranquila. Seu percurso desenhava no ar um jeito de ser. Ela e o pai iam cada um dentro de si mesmo, guardando tranquilamente sua identidade única independente do externo porém juntos naquele instante, associados num acordo tácito. Chegando ao carro o papai a desceu dos ombros num movimento preciso, cuidadoso, numa descida inclinada em curva, como num tobogã, segurou-a com o braço direito em volta e com a mão esquerda abriu a porta de trás do carro. Pôs a menininha lá dentro para posteriormente posicioná-la na cestinha adaptada ao banco traseiro. Não deu para ver o que ele fez com as compras, se as colocou antes ou depois em qual banco. Naquele momento, naquele início de noite em que chovia muito ele era verdadeiramente um rei. Único na vida dela. Por um bom tempo, até ele abdicar deste reinado em favor de outro tão jovem quanto ele era agora, um pouco mais ou um pouco menos. Conforme disse Heráclito, "Tudo é fluxo, nada fica parado."

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