Diversidade

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Acordei de uma noite sem sonhos. Como todas as últimas noites que eu me lembro. Estava amanhecendo e os raios solares ainda não atingiam os prédios. Olhei em volta. Todos já tinham acordado e estavam procurando. Durante os últimos anos, isso era o que eu conhecia do mundo.

Cinza.

O céu era cinza. Mesmo nas manhãs mais ensolaradas, o céu da grande metrópole era cinza. Todos os edifícios e viadutos ao redor eram cinza. Pixados e sem vida. O chão que pisava era cinza e sujo. As pessoas ao redor nunca largavam sua expressão séria. Os sem-vida. Os entulhos não variavam de cor. Com esperança de comer algo naquele dia, comecei a procurar também. Um pão embolorado, com um pouco de sorte.

Rasguei o primeiro saco e procurei. Uma cueca suja, algumas fraldas, muito papel. Nada de comida. Nada valioso. Nada reciclável. Abri o segundo. Mesmo resultado. Encontrei garrafas plásticas no sexto saco e as guardei. Em um lugar próximo, claro. Ser roubado tornara-se um costume, além das mortes. Muitas pessoas morriam no grande depósito de lixo da metrópole, mas o último ano apresentou um número muito maior. Doenças novas, pelo que contavam. E se as velhas já eram mortais para nós...

Medo da morte? Não me recordo, o que é isso? Ter medo de morrer significa deixar seus tesouros para trás. Não me lembro dos meus pais. Fui criado pelos meus avós, é verdade, mas eles morreram. Não sei como cheguei aqui. Não me lembro. Não guardo nada comigo. Não preciso. O que faria com algo, além de comer? Comer é a única coisa que importa aqui, mesmo não sabendo ao certo porque me preocupo com isso. Ironia, talvez. Somos os sem-vida. Não. Não, não... Não.

Encontrei. Sabia que encontraria. Atrás de um monte de papéis úmidos, dentro do décimo saco, estava o pão embolorado. Cinza. Assoprei e passei a mão. Parecia pão de verdade. Desde o dia em que confundium estranho pedaço de pedra com uma pequena broa, sempre verifico. Sei que os dois dentes que perdi não vão nascer novamente e preciso do restante para comer. Escondi o pão e olhei em volta. Uma senhora mexia em uma poltrona velha. Encarou-me. Seus olhos vazios combinavam com seus lábios fechados. Ignorou-me e continuou com sua busca. Mais adiante, uma mulher escalava uma pilha de entulhos recente. No lado oposto, um homem de meia idade parecia suar enquanto revirava uma caixa. Estava pálido. Caiu. Sabia que não iria se levantar mais. Outro homem apareceu e tomou a caixa do defunto. Ninguém se importou com o homem caído.

Todos com o mesmo olhar vazio. Somos os sem-vida.

Agachei escondido. Peguei meu café-da-manhã e o comi. Parecia que meus dedos ossudos ganharam algo além de pele. Um pouco de carne ou gordura, talvez. Não importava. Terminei e continuei minha busca. Se não achasse nada de valor, precisaria sair para procurar latas. Nos fins de semana, um cara aparece querendo comprar nossas coisas. Às vezes ele dava moedas o suficiente para comprar uma refeição. Nem todos os lugares acreditam que podemos comprar um prato de comida ou até mesmo não nos aceitavam lá, mas a cidade é grande e, mesmo que demore horas, quase sempre encontramos um lugar. Sim, às vezes a polícia nos chamava, mas... Melhor não tocar nesse assunto.

Enquanto revirava um tambor, vi uma figura correndo. Isso raramente acontecia. Era uma pequena e esguia pessoa, com cabelos grandes, sujos e bagunçados. Parecia vir na minha direção. Chegando perto, reconheci a garota, mas ela carregava algo que nunca vi naquele lixão e raramente fora dali. Não combinava com o cinza dos sem-vida.

Ela carregava um sorriso.

- Ei garoto, vem! Vamos logo, você precisa vir comigo! Achei um tesouro! Rápido!

- Você encontrou o quê? Como, aqui? Você está... Sorrindo?

- Entenderá quando chegar. Vamos!

Ela me puxou, e então corri com ela. Escalamos montes de móveis velhos e pulamos por vidros quebrados. Por onde ela passava, as pessoas olhavam. Não fui o único a estranhar aquele sorriso. Alguns perguntavam, e ela respondia somente: "Venham conosco!". Alguns tentaram acompanhar, mas logo desistiram. Somente nós atravessamos correndo o enorme e cinza depósito de lixo.

Chegamos aonde eu acreditava ser o centro do lixão. Era o lugar que mais abrigava entulhos e restos orgânicos gosmentos. Subimos um monte e ela disse:

- Olhe pra baixo!

Na base do monte, o chão estava limpo. Não havia lixo nem nenhum tipo de sujeira dentro de um pequeno círculo. E, no centro deste círculo, estava o maior e mais improvável tesouro do depósito.

Uma rosa. Uma única, solitária e vermelha rosa nascia no infértil solo, no seu pequeno e circular espaço. Meus olhos estranharam de início, mas era verdade. Lá estava ela, bela. Era minúscula, mas brilhava. Não conseguia entender. Emoções estranhas apareciam de repente. Não desgrudava meus olhos da bela flor. Ajoelhei ao seu lado. Seu cheiro inundou minhas narinas. Não pude resistir. Gotas brotaram dos meus olhos e escorregaram pelo sorriso esculpido em meu rosto.

Apenas naquele dia, o mundo não era mais cinza.

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