Capítulo único

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Urubus voavam pelo céu de Paulino Neves, município localizado no interior do Maranhão. O resto de animais mortos era o banquete das aves carniceiras. Ossos de carneiro, galinhas e espinhas de peixe jogados nos quintais dos que ali habitavam. Um rio rasgava o município ao meio. Além das canoas dos pescadores que viviam daquele santuário ecológico, uma ponte velha de madeira ligava as duas metades da terra.

Um lugar tranquilo e até paradisíaco, próximo aos pequenos lençóis maranhenses, coberto por pastos, plantações de arroz e cajueiros. O centro e as ruas adjacentes já possuíam asfalto, o que proporcionou vários acidentes causados por jovens motociclistas. Logo o prefeito encheu o asfalto com lombadas. Nos bairros com mais eleitores do atual prefeito, as ruas foram pavimentadas. E no restante esmagador do município, todas as vielas eram areias esbranquiçadas e fofa que dividiam terrenos cercados por estacas e arames: as fronteiras de cada família.

Assim como o rio partia a cidade em leste e oeste, a fé dos moradores se assemelhava as águas partidas por um linha invisível. Entre a esperança e a superstição dos pescadores e coletores de manguezais. Um lugar cercado de bares às margens do rio para os libertinos e igrejas cristãs para os moralistas. Os boatos circulavam pela região como fogo queimando palha seca. Velhos questionavam crianças e jovens se escondiam de adultos.

Portanto, sempre alguém via algo para contar: a filha do Seu Zé que estava de "sem vergonhice" com o filho do Seu Carlos; o Juninho Flecha que levou uma queda na motocicleta com as loucuras e as manobras radicais de motocross; o neto da velha Josefa que veio da capital para visitar a avó, e que fumava maconha escondido junto com os primos; o Ricardinho que fica de "viadagem" com o filho da Dona Socorro. As histórias eram muitas, e o assunto não faltava para implementá-las com mais mentiras.

Entretanto, um boato sempre surgia de alguma inspiração, sendo real ou não, existiam coisas que não deveriam ser vistas. Deveriam permanecer ocultas e longe dos curiosos.

A crença só é fé quando não vemos aquilo que acreditamos. Então os olhos se apagam e abrimos os ouvidos para uma língua afiada pelo tempo.

***

Anoitece.

Em um casebre de madeira, afastado das outras casas de Paulino Neves, oculto no meio da mata com árvores de copas tão densas que bloqueiam a luz da lua. Uma velha de 87 anos passa a língua numa tira de papel e enrola seu precioso fumo. As paredes de madeira úmida refletem o brilho alaranjado da luz de velas. O som contínuo de gotas pingando numa poça d'água ecoa no espirito da mulher. Sentada em uma cadeira de balanço, ela inclina o corpo castigado e acende o cigarro artesanal em uma vela próxima.

Traga e observa a fumaça dançar pelo ar.

Revelações do passado, presente e futuro. Os olhos reviram e ficam completamente brancos. Um trovão derruba o céu. Os corações mais sensíveis de Paulino Neves batem mais rápidos do que tambores em rituais indígenas. Outro trovão, e o estrondo é apocalíptico. A velha sorri com uma fileira de dentes amarelados e a gengiva esburacada. A fumaça desce pelas narinas e um relâmpago risca o céu que arrasta as nuvens ao longe. Outro trago no cigarro. Outro trovão digno de um deus raivoso com a falha humana.

A fé primitiva que lhe foi passada por sua mãe, que ouviu de sua avó. Seguindo uma linha genealógica através da tradição oral, que descendia de uma tribo que mantinha uma ligação profunda com as forças da natureza, da criação e da destruição. Mas o que movia tudo era a transformação. Isso! O ciclo que movia a vida até a morte. Renascia pela água. O elemento mais glorioso do planeta.

***

Lucia se esgueira pela mata densa. Os pés completamente sujos de lama. A blusa branca já havia sido rasgada por diversos galhos e espinhos que se assemelhavam a dedos diabólicos lhe impedindo de chegar ao seu objetivo.

Água InquietanteOnde histórias criam vida. Descubra agora