Um

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Todos os homens matam aquilo que amam."

Oscar Wilde



O sono enfim levou meu corpo. Estou afundando, já não estou sobre a cama, revirando-me sob efeito da insônia entorpecida ao lado de Julia, que tomara outra garrafa de vinho antes de desistir de ignorar minha presença por completo. Não estou dentro daquele quarto de ar insólito e opressor olhando para o teto enquanto minha raiva sofre algum processo químico ao fundir-se ao uísque que fervilha em meu estômago. Estou sendo puxado para baixo. Há água por todo o cômodo. Meu corpo submerge. Tento respirar, puxar ar para os pulmões, que logo se enchem de desespero e água. Água! É real, sinto a insipidez congelante invadindo minhas vias aéreas. Meus músculos congelam, estou a me afogar.

***

Num piscar de olhos, o lago ressurge a minha frente. A vertigem e a dor se fundem em minha cabeça. É um dia de verão, o sol lança seu brilho desbotado sobre o lago soturno. Julia está ao meu lado. Ela sorri. Uma coloração bronze se espraia em um rubor cálido sobre suas bochechas e nariz cobertos de sarda. Há um brilho sulfúrico e sedutor em seus olhos azuis.

O vento sopra os galhos das árvores, pássaros alçam voo, a superfície soturna do lago se move lentamente. Olho para a varanda da casa de espectro colonial, e minha mãe está lá, não há brilho em seu olhar, vagando por aquele cinza entorpecido da doença. O Alzheimer já se espalhava por suas funções cognitivas que declinavam. Ela, percebendo que eu a observava, lançou-me um sorriso enfraquecido e seu olhar cinzento e enevoado de incompreensão dava-lhe uma aparência de ser apenas uma casca vazia com o rosto enrugado. Dali a alguns meses, ela morreria de um ataque cardíaco, que também vitimara meu pai. Mas, ao menos, seria durante o sono. Ainda tenho a convicção de que a sua morte, tenha sido o alívio que todos estávamos esperando em silêncio.

Naquele dia ensolarado, comemorávamos o sucesso de vendas de meu livro. Enfim, me tornara um escritor, um acidente de percurso em meu destino intrínseco. E fora ideia minha ir até aquela casa em Stinson Lake, que havia recebido de herança após a morte de meu pai. A culpa foi toda minha.

***

Volto minha atenção para Julia. O brilho bronze de seu rosto se dissolve em uma máscara empalidecida e não vascularizada, e rapidamente seus olhos se fixam no lago. Então, de repente, ela grita. Sua voz ressurge nas profundezas de minha cabeça, vinda como uma onda sonora de baixa frequência, amplificando-se, fundindo-se ao chilrear das árvores, do soprar do vento, dos pássaros sobrevoando, até se tornar ensurdecedor.

Julia corre em direção ao velho píer. Fico imóvel por alguns segundos. Instintivamente, procuro Josh, mas ele não está em lugar algum. Minha audição se reduz a pancadas úmidas em meus tímpanos, meu coração dispara como um cronômetro. Uma onda de desespero invade minha pele. Uma lambida quente de dor corre o alto de minha nuca. Minha mãe mantém-se impassível ao que está acontecendo, seus olhos miram alguma superfície espectral a sua frente.

Meu corpo parecia adormecido e flutuante. Meu peito parecia reduzir-se de tamanho, um nó de ar formava-se em minha garganta. Minha mãe de repente, voltando a si, se desespera e grita, mas para mim a cena ocorre como um filme mudo, silenciosa e ainda mais assustadora. Julia já está na água. Corro mesmo sem sentir minhas pernas, tentando respirar. De modo mecânico, cambaleante, tentando desanuviar a vertigem. Julia desaparece na água e também me atiro no lago. O frio me invade e minhas pernas ficam imóveis, milhares de picadas de dor se abrem em cada fibra de meu corpo, como se estivesse rodeado de águas-vivas. Meus braços pesam milhares de toneladas e começo a afundar.

Era agora um espectador, olhando meu corpo adormecido despencar.

Naquela manhã ensolarada, eu vi Josh puxar o ar pelos pulmões, desesperado, enquanto a água invadia suas vias aéreas, lhe sufocando.

Eu tento alcançá-lo, mas não consigo. Não importa o quanto eu volte naquele momento, quando Julia percebe o corpo caindo na água e corre desesperada. Tudo que vi foi a silhueta de Josh se afastar, até desaparecer na escuridão.

Quando emergi exausto, Josh não havia voltado. Julia já retornava, esgotada. Eu submergia novamente à escuridão fria. Até meus músculos parecerem presos a pesos invisíveis. Mas não o alcancei... Não alcancei Josh.

O corpo foi encontrado no fundo do lago, três horas depois, quando os bombeiros e a polícia...

O AbismoOnde histórias criam vida. Descubra agora