Capítulo Único

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— Gunna!
— O quê, Dottie? – Falou empurrando a porta do gabinete com o quadril, equilibrando uma jarra velha d'água dentro de uma bacia de estanho amassada.
— Corra dizer à Laire para se pôr bonita. O capitão Randall virá hoje. – Disse a velha proxeneta sorrindo com vários dentes faltando, e abanando um pedaço de papel que obviamente tratava-se do bilhete enviado pelo Casaca vermelha. — Ele é o nosso melhor cliente, vá siùrsach! Gu grad!

Voltou ao pequeno corredor que dava para o salão em que ficavam as mesas, onde os clientes sentavam-se a beber e a escolher dentre o leque de flores de Madame Dorothea, a que mais lhe apetecesse. Correu para subir a escada sem derrubar a jarra, com a bacia apoiada no quadril enquanto levantava as saias com a outra mão para não tropeçar. Resmungando, chegou ao topo da escada estreita e mal cuidada, tomou o cuidado de pular o degrau que estava com a tábua solta e fendida pelo tempo, desviou do prego assassino que a anos encontrava-se entre os pedaços do corrimão sacolejante. Gunna conhecia bem cada canto da casa em que vivia desde os 15 anos, quando chegou assustada e trêmula, desesperada após ser expulsa de casa e do convívio de sua família.


— Laire! – Bateu a porta.
— O que é, buachar?! – Perguntou e abriu a porta mal humorada, ainda usando a camisola de dormir, com os cabelos loiros e encaracolados desgrenhados e ostentando fundas olheiras arroxeadas. – Diga.

Laire aparentava ter quase 35 anos, embora Gunna suspeitasse que ela tivesse menos, talvez algo entre 29 e 30 anos.

— Dottie pediu que...
— Diga de uma vez menina! - Laire apoiou a mão na cintura larga.
— Randall vem hoje. Se apronte.
— E já me trouxe isso? Thank ye. – Sem esperar resposta, tomou a bacia da mão dela e bateu a porta com força.
Amaldiçoou-a com os dentes cerrados e voltou a descer para buscar novamente água para seu asseio antes de anoitecer e seus possíveis clientes chegarem.

Já a noite, Gunna dividia-se entre servir mesas e sentar-se no colo de alguns homens para deixa-los apalpa-la como quem aperta uma maçã para saber se está madura o suficiente para comê-la sem soltar-se os poucos dentes restantes na boca. Até então só havia tido um cliente, o velho McEwan que tinha preferência por ela devido a semelhança com um antigo amor da época de menino. Ele nunca demorava mais do que 10 minutos, pagava-lhe e partia.

A porta abriu com ruído e trouxe o frio da noite para dentro do salão aquecido. O capitão Jonathan Randall entrou e fez-se silêncio imediatamente no recinto, a clientela composta em grande parte por escoceses ficou paralisada. Gunna percebeu que o frio no lugar não provinha mais do exterior, visto que Black Jack já havia fechado a porta, era a tensão no ar pela presença dele que dava essa sensação. A quietude foi somente quebrada por Dottie que saudava seu amado cliente.


— Laire está esperando lá em cima, senhor capitão. – Disse Dottie mostrando-o os dentes amarelados e cariados e os espaços onde deveria haver mais alguns.
— Capitão. – Laire chamou-o do alto da escada com as mãos na cintura e seu melhor sorriso falso.

Acompanhou-o com o olhar sem deixar de admirar o modo como ele movia-se, sua postura, as costas bem retas e o andar silencioso. Randall vestia o uniforme quase despreocupadamente, a farda não lhe pesava, era como se fizesse parte de sua alma, levava sua espada e uma pistola presa ao cinto.
Nem sequer olhou ao redor ou disse uma palavra antes de subir para encontrar-se com Laire.


— Nem pense nisso. – Disse Senga a seu lado segurando um copo de cerâmica e empurrando-o para Gunna.
— O quê? – Ela nem ao menos havia percebido que ainda estava encarando o lugar onde Randall havia sumido.
— Black Jack. Não pense nisso.
— Não estou pensando nada. – Falou baixando a vista rapidamente, pegando o copo e bebendo o vinho que continha nele.
— É melhor que não pense mesmo. Você sabe como Laire fica quando ele vai embora ou você deseja terminar o dia no mesmo estado?

Into The Devil's EyesOnde histórias criam vida. Descubra agora