No meu peito, a ira se espelhava de forma descomunal, eu só queria gritar, arrancar aquela droga de véu da cabeça e finalmente dizer tudo que vem entalado na minha garganta nos meus dezenove anos de uma vida medíocre. Sem mãe, sem irmãs, somente com um homem, machista, mentalidade de tempos atrás que acredita que a mulher não tem direito a nada. Mas tudo o que fiz foi balançar a cabeça em concordância, sem sequer ousar desviar o meu olhar do chão.
- Sim, senhor. - Minha voz saia em um sussurro difícil de entender, quase inaudível. Era assim que ele gostava, parecia que meu pai não suportava minha voz, já que deixava bem claro que a mesma sempre teria que sair de maneira moderada.
Satisfeito, depois de mais um sermão de como uma garota muçulmana deveria agir, deu-me permissão para sair, acompanhada por uma das criadas, obviamente.
- Por que foi ser mais uma menina? - Sempre ouvia minha mãe, chorando, silenciosamente, lamentando terem tido quatro filhas e nenhum homem, fato este vergonhoso para uma família tradicional iraniana, cujo valor do ser mulher era demasiado inferior e até desumano, pensava. A lembrança dela me entristecia ainda mais, pois sei que se eu fosse menino, ela teria me amado mais. Mas eu não poderia ter nascido um menino? Ficava imaginando como seria não precisar usar tantas roupas, cobrindo todo meu corpo, poder gargalhar e falar alto, sem medo de ser julgada, tolhida ou até apanhar...
Mas Alá sabe o que faz, pensava eu... Desde pequena acompanhava os tristes e solenes cultos para ele, uma divindade encontrada no livro sagrado do islamismo, o Alcorão, Alá era extremamente rigoroso e punia seus fiéis, por qualquer deslize, ao menos era o que nos ensinava meus pais e os líderes. Confesso que não tinha muita paciência em ler um livro que só falava de regras e mais regras e regras. Sempre fui muito sensível, criativa, qualidades extremamente perigosas, dizia minha mãe, pesarosa, como se eu tivesse nascido com tamanha falta e necessitando de uma expurgação de meu eu, para me tornar uma outra pessoa, a qual não gostaria de ser...
Por muito tempo ignorei, tentando acreditar que esse era um mundo bom, mas cada dia em que passava definitivamente via que não era... A partir do momento em que tive conhecimento que o mundo não é totalmente como onde eu vivo, passei a pensar em fugir. Onde eu moro as mulheres não tem voz e devem submissão total e absoluta aos homens, podendo até ser mortas, sem nenhum constrangimento ou remorso. Em diversos lugares, as mulheres têm o direito de estudar, trabalhar, escolher com quem vão se casar, qual religião seguir...
A minha vida toda, eu só tive a chance de conhecer a um deus, de adorar apenas a ele, pois todos diziam que era isso que eu deveria fazer. Mas eu não quero isso mais e é por isso que venho para aqui. Lembro exatamente o momento em que os encontrei, foi em uma das minhas saídas rápidas com Naíma, uma criada. Eles estavam pregando um Deus que salva, cura, ama. Um Deus diferente do que eu sirvo. Um Deus que eu quis servir, por vontade.
Desde cedo, por morar em uma família de alto poder aquisitivo, aprendi a leitura e escrita persa, contudo quase tudo era proibido de se ler, em especial para as moças. Quando vi um livro de capa marrom, não me chamou atenção, imaginei que assemelhasse ao velho e conhecido Alcorão, cuja leitura não me instigava. Contudo, tudo começou a mudar quando um dos homens, um senhor de uma idade assaz avançada, de um semblante sereno, acolhedor começou a falar de Jesus, do fato dele ter criado todas as coisas e ter vindo na terra como ser humano: "O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas." Cl 1:15-17
Comecei a pensar, como pode um Deus se tornar criatura? Era tudo muito confuso para mim... Mas o mais surpreendente ainda estava por vir...
Com a voz, firme, cheia de fé e de esperança, ele continuava a leitura com um amor e entusiasmo que nunca tinha ouvido:
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Coração missionário
SpiritualEsse pequeno conto tem como cenário diferentes localidades (Irã e Brasil) e alguns personagens centrais, em especial Samira, Sr. Ali e irmão Benedito. Samira se vê sufocada em uma atmosfera que a aprisiona, mina seus direitos e viola sua identidade...