Ouvi três leves batidas na porta e tentei, em vão, controlar o choro, apenas para não assustar quem estava do lado de lá.

-Está pronta menina?- uma voz sem emoção soou, meio turva devido à forte porta de madeira que nos separava. Mordi o lábio inferior tentando pôr fim aos soluços, pestanejei velozmente para afastar as lágrimas que me cobriam os olhos e ensaiei mentalmente a minha voz para que não soasse tão desesperada. Mas foram esforços inválidos: eu estava uma lástima e não tinha como escondê-lo.
-Estou a ir- respondi, como que num suspiro, mas, assim que o ouvi afastar-se, senti o meu rosto afogar-se em lágrimas de novo.

Apetecia-me correr escadas abaixo em direção à estufa e chorar abraçada à minha mãe, ouvir os seus concelhos e sentir os seus pequenos beijos sobre a minha testa ou então ir ter com o meu pai à biblioteca da mansão onde ele mandaria preparar um chá e ouviria atentamente o que lhe contava enquanto tentava animar-me com com piadas sem graça que, por algum motivo desconhecido, sempre acabavam por me fazer rir. Mas, e daí o meu choro, a minha mãe não estava na estufa nem, tampouco, o meu pai na biblioteca. Nem aí nem em lado nenhum. Deles restavam apenas corpos inanimados, frios e sem cor que nem mesmo chegaria alguma vez mais a ver pois eles preferiram ser cremados. Não sabia nem se ainda eram corpos com forma ou se já haviam sido reduzidos a cinzas. De qualquer modo eu sabia que me estava a iludir, que provavelmente se ainda estivessem vivos eles também não estariam na estufa nem na biblioteca.

  Provavelmente estariam a trabalhar, como sempre. E, de repente, uma onda de raiva invadiu-me. Porquê? Talvez se eles passassem mais tempo comigo isto nem chegasse a acontecer. Se eles não tivessem ido naquela maldita viagem de negócios eu ainda estaria a receber beijos na testa e a ouvir piadas sem graça. Se eles passassem mais tempo a cuidar de mim e menos no laboratório talvez... A minha raiva depressa acabou dando lugar a uma nova ronda de lágrimas. Eu despedira-me tão brevemente, já habituada à ausência deles, que o que mais era capaz de sentir era arrependimento. Um "tchau" e um beijo não deviam ser o suficiente. Se não pudesse impedir queria pelo menos despedir-me decentemente.
  -Mel...- uma voz familiar fez-se sentir e ouvi o seu forte mas, ao mesmo tempo, suave punho bater na porta.- Abre, Melanie.
Abri a porta num impulso e abracei-a com força apoiando o meu queixo no seu ombro enquanto ela me penteava os cabelos com os dedos ásperos.
  -Estão todos à tua espera, temos de descer.

  Amanda desceu à minha frente com a sua pressa habitual, não fazia de prepósito para me abandonar, eu sabia que não. E sabia também que aquilo era algo que precisava de fazer sozinha.
  Eu limpei bruscamente as lágrimas e coloquei os óculos que embaciaram com o meu suspiro profundo. Fui descendo as escadas lentamente, cada degrau fazia-me sentir cada vez mais fraca como se perdesse um pedaço da pouca coragem que tinha a cada degrau.

  Descia agarrada ao corrimão, tentando não olhar para frente, tentando não olhar para todos aqueles olhares de pena sobre mim. "Coitadinha" pensavam eles, sei que pensavam pois sussurravam isso uns para os outros, se não o faziam na prática, faziam-no dentro da minha cabeça... Mas naquele momento já não me fazia muito diferença. Aquelas escadas que sempre me pareceram compridas, compridas de mais na verdade, passava o tempo a queixar-me à minha mãe de como o seu tamanho exagerado era chato quando, à noite (nas noites antecedentes aos testes em que estudava até tarde, por vezes de manhã ou até de madrugada também), tinha de as subir para chegar ao meu quarto. Mas naquele momento nem todos os degraus do mundo pareciam suficientes, eu não estava pronta, nunca estaria. Era uma certeza.

  O último degrau chegou, depressa demais, mais lentamente que o costume, mais ainda depressa demais e respirei fundo esticando o meu sapato preto de tacão médio para o chão, tentando preparar-me para o que estava para acontecer (lembras-te deles mãe? Dos meus altos sapatos pretos? Tu obrigavas-me a usá-los sempre que combinavas de te encontrar com os teus colegas ou quando tínhamos visitas importantes, não obstante sempre que os usava tu gracejavas como te sentias ainda mais baixa, como eu era alta como uma modelo e como todos ao redor ficariam com inveja; ninguém ficava com inveja, francamente, eu não era muito alta e tu não eras assim tão mais baixa que eu assim mas nunca to disse pois para ti aquilo era um elogio, não podia desperdiçar a minha única oportunidade de ter a minha aparência elogiada, não que eu seja feia, não o sou de todo, mas suponho que as pessoas costumem ficar mais deslumbradas pelo meu desempenho e prestígio do que pelo meu rosto... Ou pelas minhas pernas). Assim que os teus adorados sapatos pretos tocaram no grande tapete da sala de estar a realidade atingiu-me por fim, como uma flechada, não pude mais conter o choro. Lágrimas escorriam mais rápido do que algumas imaginei que pudessem escorrer e os meus olhos eram incapazes de encarar outra coisa que não os meus sapatos, a minha cabeça parecia pesada, toda eu parecia pesada e sentia-me prestes a desmaiar quando a Mandy e o Oliver me agarraram um por cada braço e me orientaram (praticamente carregaram) até à cozinha.

  -Melanie... Eu lamento, é meio clichê, mas tu sabes que é sentido. -o Oliver abraçou-me com força.

  -Ah- a Mandy suspirou visivelmente irritada- Como se ela já não ouvisse "Eu lamento" o suficiente. Se esse é o tipo de amigo que tu és, o tipo de amigo que não consegue dar-lhe mais do que pena então talvez tu não mereças sequer a companhia dela. Mel! Tu és doce e forte e eu sei que mesmo que duro isto acabará por passar. Eu vou ajudar-te a desviar esta névoa amaldiçoada, eu juro que vou! Eu estive contigo antes, estou contigo agora e vou estar sempre depois porque acredites ou não existe um depois e nós vamos disfrutá-lo juntas! -ela olhou de relance para o Oliver revirando os olhos- Juntos se o paspalho ali se decidir a ser alguém decente.

  E assim aconteceu, pela primeira vez nos últimos dias eu sorri genuína e alegremente. Pela primeira vez nos últimos dias eu esqueci aquilo mesmo que por um segundo, um milésimo de segundo talvez. Não deu nem tempo de a Amanda se intrometer direito entre o nosso abraço para desagrado do Oliver quando uma voz monocórdica e quase entediante se fez soar e o meu mordomo apareceu à porta:

  -Menina, tem alguém que deseja falar consigo. Alguém importante.

Respirei fundo e dei um passo em frente desfazendo o abraço de grupo.

  -Diz-lhe que entre.


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⏰ Última atualização: Aug 14, 2017 ⏰

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